02 maio 2007

As Feras e as Bestas

Passado um ano, já estou completamente desmotivado.
Um ano com novas aulas, nas quais pouco ou nada aprendi. E queria tanto! Até comprei um caderninho para cada disciplina e tudo, julgando eu que ia ser como na faculdade: capazes os professores de dizerem alguma coisa que valesse a pena escrever. Aqui nem há professores: são formadores. Que nos tratam a todos por Colega Dr.,

- Ó Dr., diga lá, sem medo que somos todos Colegas! Dr.!

e a quem se entretêm a contar das suas histórias e dos seus casos lá do escritório. Até se podia aprender, mesmo assim, não era? Ali não. É verdade que há excepções. Como as não conheci, não posso falar delas, que os meus ensinamentos deontológicos não me permitem.

- Então, Doutores! Novidades? – diz ela, formosa e nada segura.

Entretanto, lá no escritório – e encho a boca –, continuo a entregar requerimentos nos tribunais e nas conservatórias e nos cartórios e nas finanças e nos escritórios dos Colegas. Ando de fatinho para cima e para baixo no metro, com uma pasta da sociedade – lá do escritório – debaixo do braço. Com ar arrogante, para fingir que sou mesmo importante, a ver se as pessoas não olham a pastinha meia vazia e pensam:

- Olha, o estagiário lá do escritório a fazer serviço de estafeta.

Que é para isto que o curso de Direito me habilita imediatamente: para ser estafeta. Cinco anos de estudo, mais um que já vai passado. Ainda sei o é uma licença (é a remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento de um particular que passa a ser livre, nas palavras do saudoso Prof. Sousa Franco), sou capaz de lhes explicar o que é um terceiro para efeitos do registo predial (os terceiros referidos são apenas aqueles que tiverem, nos termos do já examinado artigo 17.º/2 do Código do Registo Predial, uma presunção júris et de jure a seu favor. Escreve Menezes Cordeiro, e sei mesmo o que ele quer dizer). Não acreditam. Deviam ver o ar sério que o Senhor Doutor Advogado Patrono Colega carrega no rosto quando me passa o envelope para as mãos:

- Dr., vai entregar isto no escritório do Colega. Olhe que é muito importante! Não perca!

Passados dois anos, estou capaz de cortar os pulsos. A alguém.
Lá no escritório onde vou estando, só apareço de manhã. Faço umas coisas. Como o Senhor Doutor Advogado Patrono Colega sabe que preciso dele durante três anos, faz o que entender do meu tempo. Incluindo embrutecer-me.
Lá na OA também vou fazendo do que querem. Já não há aulas. Agora há umas coisas, uma vez por mês, que se chamam escalas. Não esperem – acho que ninguém espera – que tenha grandes conquistas naquelas alegações do debate instrutório, ou que requeira grandes diligências de prova naquela instrução, ou que invoque atenuantes para diminuir a pena do condenado. Encolho os ombros, o mais das vezes, que a vontade também esmorece.

O Senhor Doutor Advogado Patrono Colega não há maneira de passar um cheque que se veja ao aqui Colega. De tarde levo o meu fatinho até ao trabalho que vai pagando as contas e os vícios. Como o vício de ser Advogado, que assim que acabei as aulinhas tive que pagar outra vez. Acho que vou perceber depois para quê.

- Boa tarde. O meu nome é AR, estou a ligar-lhe do seu Banco. Este momento é oportuno para falarmos um pouco?

Vendo cartões de crédito a uns senhores que não têm tempo para me ouvir, nem grande interesse.

- Ó senhor, eu gosto de pagar logo! Só compro enquanto tenho dinheiro! E todos deviam fazer assim, que não havia as desgraças que aí se contam!

Até gostava de lhe explicar que algumas daquelas Cláusulas pequeninas que tem no contrato de adesão ao cartão de crédito que lhe estou a impingir podem ser consideradas nulas, mas não posso porque a Senhora Supervisora está a escutar e vem corrigir prontamente. E ameaçar: que não é assim que se conseguem os objectivos, que assim não há prémio de produtividade, que assim não há trabalhinho.

E a OA cada vez mais longe. Cada vez que sou obrigado a fazer uma escala, tenho que pedir ao patrão a sério que me deixe ir. Que vá, mas no dia seguinte tenho que fazer 10h, para compensar. Digo-lhe que é ilegal?

Passados três anos, já nem sei onde fica a OA. Como passei três anos a telemarkintar, já não sei que quando interponho uma acção com um pedido de divórcio posso cumular logo o pedido de pensão de alimentos. Não me recordo. Passaram três anos desde que fiz a primeira fase com as aulinhas na OA, e pelo menos quatro desde que tive direito da família. Enquanto levo e trago documentos ao senhor notário - outro licenciado em Direito mas que não fez estágio na OA, que está pagar a sua casa em Paço de Arcos e as últimas prestações do carro - não é coisa que me passe pela cabeça.
É suposto agora fazer três exames sobre matérias várias, com as quais já não lido há três anos, e mais um exame oral.

Lá na terrinha a minha mãe já não diz que o filho é Dr., em Direito. Diz que lá está para Lisboa, a trabalhar.

- Eu disse àquele rapaz que fosse electricista! Que era tão jeitoso com as mãos! Mas meteu na cabeça que na cidade é que estava bem, que havia de ser doutor! Sacana do rapaz!

E o rapaz lá por Lisboa, sem ser Advogado nem operador de telemarketing. Demasiado tarde para ser outra coisa. Demasiado cansado para ser continuar a ser estagiário. Mais do que entregue às feras, entregue às bestas.

Mas apenas o almocreve desmontou, e num relâmpago lhe tirou os aparelhos, acabou por compreender que o ia abandonar ali, estafado, coberto de suor, indefeso, à fome do inimigo. Salvava a vida com a vida dele... E lamentava as suas dezassete libras!
E, afinal, a manhã vinha a romper!... Só quando viu o dono a caminhar pela serra fora de albarda às costas – não se envergonhar! – e sentiu os dentes do primeiro lobo cravados no pescoço, é que reparou que a luz do dia começara a desenhar as coisas e a dar significação a tudo.
Os Bichos
, Miguel Torga




3 Comments:

Anonymous Anónimo said...

Porque é que esta descrição me é tão familiar?
Estive até à quatro meses atrás numa situação exactamente igual, tirando o facto de que não vendia cartões de crédito mas antes, trabalhava numa operadora móvel e onde tinha também como colegas de trabalho mais dois ADVOGADOS! Sempre trabalhei ao longo do curso mas pensei que assim que entrasse para a fase de estágio na OA tudo ia ser diferente... Foi pior! Acabei por estagiar metade do m/ tempo e trabalhar até à noitinha,sem receber qualquer remuneração ao longo de todo o estágio e oficiosas, nem vê-las!Experiência na barra do tribunal foi nula ao longo de todo o tirocínio. Ainda assim e apesar de não ter possibilidade de dedicar-me a 100% ao estágio como muitos outros, terminei o tirocínio com distinção, com dispensa do exame oral. Depois é que foi. Já estava a trabalhar em dois empregos, até que à 4 meses consegui deixar o emprego da operadora móvel e estou a trabalhar para um empresa de assessoria hipotecária. Não é que esteja melhor economicamente, pelo contrário. estou a ganhar menos que com os dois empregos, mas a advocacia não dá nada e é melhor ter alguma saúde e dinheiro para pagar as contas.Sim, porque com o vencimento que actualmente estou a auferir só dá para pagar as contas... Como eu o compreendo, colega!

26 junho, 2007  
Anonymous Anónimo said...

Pois é, pois é, infelizmente esta vida não está fácil para ninguém! Ainda assim, pergunto: não foram os Senhores Doutores Advogados Patronos que convidaram os Senhores Doutores Advogados Estagiários a irem fazer os respectivos estágios nos seus escritórios, ou foram?
Seja como for, eu, que não exploro ninguém, afianço que as acções não se interpõem (deixe-se lá as interposições para os recursos!) - antes se propõem ou intentam - e que terminar o tirocínio com distinção «à 4 meses» (há mais tempo que fosse) bem justificava um pouco mais de comedimento na crítica...

10 julho, 2007  
Blogger ana said...

Caro Dr.

recomendaram-me o seu blog e pela primeira vez tive vontade de comentar.

Devo confessar que me surpreendi a pensar comigo mesma:«mas este colega está a falar de mim!».

A sua análise é das mais rigorosas, objectivas e bem humoradas que vi nos últimos tempos. Dou-lhe os meus mais sinceros parabéns por isso.

é que até aquela parte em que se refere a telemarketar num banco me é familiar!

Entretanto mudei de escritório por isso muitas destas situações já não fazem parte do meu dia-a-dia, ainda assim ler o seu blog foi rever os meus desabafos noutras palavras.

Espero que este blog lhe tenha servido pelo menos para o necessário desabafo, tão essencial para mantermos a nossa sanidade mental ao longo desta longa peregrinação de pés descalços que se chama estágio.

Com os melhores cumprimentos
uma colega reconhecida

12 outubro, 2007  

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