"É mais acima que a divindade mora"
A Loja Jurídica foi censurada. Perdão, encerrada. Perdão, convidada a fechar. Perdão, interpelada para se trancar e nunca mais abrir, sendo os seus participantes perseguidos até ao fim do mundo conhecido, tendo quem com eles se cruzar autorização para apedrejar a gosto.
Parece que foi isto que aconteceu: que eu não vi, mas ouvi dizer. Uns Senhores Doutores Advogados tiveram uma ideia: criaram um escritório de advocacia em centros comerciais, ou lá perto. Com um grande estilo, devo dizer. Amplo. Arejado. Moderno. Bonito. Chamaram-lhe Loja Jurídica.
Mas vieram lá uns outros Senhores Doutores Advogados, que não são do Restelo, são ali de São Domingos, que mandaram encerrar tudo. Como na velhinha história da guerra de 1908, do Raul Solnado:
- Vieram cá os fiscais, não tínhamos licença de porte de arma, encerraram a guerra.
Circula por aí um comunicado no qual a OA explica porque mandou fechar a dita Loja. Primeiro, é porque ninguém lhes pediu autorização. Escreve-se logo no primeira parágrafo, que abriram a Loja sem qualquer autorização, portanto este deve ser o fundamento mais importante.
Mas há mais motivos, está bom de ver. Dizem que é uma manobra que mercantiliza a profissão, que não é compatível com o exercício da advocacia.
Estar um advogado na televisão a dar conselhos e opiniões, não mercantiliza? Frequentar festas e eventos sociais distribuindo cartões de visita, não mercantiliza? E daquelas vezes em que a própria OA organizada dias da advocacia, em que estão os Senhores Doutores Advogados, alinhados em mesinhas, recebendo e aconselhando os senhores que lá caem?
Em qualquer caso, embora não seja do conhecimento comum, os advogados são pessoas que exercem uma profissão. E têm contas para pagar e precisam clientes. Os políticos são pagos. E regem a coisa pública. Os médicos são pagos. E cuidam da vida e saúde das pessoas. Mas os advogados têm pudor de falar em dinheiro. Só pudor, é certo, mas algum pudor.
Depois, vem a OA, neste seu comunicado, peça para ficar nos anais, queixar-se de que é um problema a Loja estar num piso térreo, com acesso para a rua. Roça o ridículo. Que assim se vulgariza a profissão, ao arrepio da exigência de dignidade no exercício da profissão, bem como dos usos, costumes e tradições da classe. E será diferente se tiver o escritório no 1.º piso? Do lado direito? E se for do esquerdo? E no último piso, pode? E se for num prédio sem elevador? E a regra, aquela lá dos bons costumes e tradições, só obriga a ter escritório nos andares de cima? E se tiver na cave? Piso térreo não seria aconselhável, até para garantir o acesso a pessoas com deficiências?!
O seu gabinete, no consultório, dormia numa paz tépida entre os espessos veludos escuros, na penumbra que faziam os estores de seda verde corridos. Na sala, porém, as três janelas abertas bebiam à farta a luz; tudo ali parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira estendiam os seus braços, amáveis e convidativos; o teclado branco do piano ria e esperava, tendo abertas por cima as Canções de Gounod; mas não aparecia jamais um doente.
Os Maias, Eça de Queirós
E se tiver uma carpete vermelha na entrada? E luzes azuis? Janelas pequenas demais? E as secretárias em pinho? Ou cerejeira? E sofás em pano? Ou pele?
O comunicado tenta explicar também que não se pode fazer este tipo de publicidade. Acho que querem dizer que não se pode estar tão acessível. Para manter aquela ilusão de que os Advogados são essenciais. Aquela coisa do fruto proibido e apetecido. Aquele tique de olhar para cima para disfarçar as vertigens. Aquela fantasia de que o Advogado é sério se for sisudo, mal encarado, deixar o cliente uma hora na sala de espera, cobrar caro e falar alto. "Quando finalmente chego ao cimo, é mais acima que a divindade mora". Temos que adorar o Torga.
Parece que foi isto que aconteceu: que eu não vi, mas ouvi dizer. Uns Senhores Doutores Advogados tiveram uma ideia: criaram um escritório de advocacia em centros comerciais, ou lá perto. Com um grande estilo, devo dizer. Amplo. Arejado. Moderno. Bonito. Chamaram-lhe Loja Jurídica.
Mas vieram lá uns outros Senhores Doutores Advogados, que não são do Restelo, são ali de São Domingos, que mandaram encerrar tudo. Como na velhinha história da guerra de 1908, do Raul Solnado:
- Vieram cá os fiscais, não tínhamos licença de porte de arma, encerraram a guerra.
Circula por aí um comunicado no qual a OA explica porque mandou fechar a dita Loja. Primeiro, é porque ninguém lhes pediu autorização. Escreve-se logo no primeira parágrafo, que abriram a Loja sem qualquer autorização, portanto este deve ser o fundamento mais importante.
Mas há mais motivos, está bom de ver. Dizem que é uma manobra que mercantiliza a profissão, que não é compatível com o exercício da advocacia.
Estar um advogado na televisão a dar conselhos e opiniões, não mercantiliza? Frequentar festas e eventos sociais distribuindo cartões de visita, não mercantiliza? E daquelas vezes em que a própria OA organizada dias da advocacia, em que estão os Senhores Doutores Advogados, alinhados em mesinhas, recebendo e aconselhando os senhores que lá caem?
Em qualquer caso, embora não seja do conhecimento comum, os advogados são pessoas que exercem uma profissão. E têm contas para pagar e precisam clientes. Os políticos são pagos. E regem a coisa pública. Os médicos são pagos. E cuidam da vida e saúde das pessoas. Mas os advogados têm pudor de falar em dinheiro. Só pudor, é certo, mas algum pudor.
Depois, vem a OA, neste seu comunicado, peça para ficar nos anais, queixar-se de que é um problema a Loja estar num piso térreo, com acesso para a rua. Roça o ridículo. Que assim se vulgariza a profissão, ao arrepio da exigência de dignidade no exercício da profissão, bem como dos usos, costumes e tradições da classe. E será diferente se tiver o escritório no 1.º piso? Do lado direito? E se for do esquerdo? E no último piso, pode? E se for num prédio sem elevador? E a regra, aquela lá dos bons costumes e tradições, só obriga a ter escritório nos andares de cima? E se tiver na cave? Piso térreo não seria aconselhável, até para garantir o acesso a pessoas com deficiências?!
O seu gabinete, no consultório, dormia numa paz tépida entre os espessos veludos escuros, na penumbra que faziam os estores de seda verde corridos. Na sala, porém, as três janelas abertas bebiam à farta a luz; tudo ali parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira estendiam os seus braços, amáveis e convidativos; o teclado branco do piano ria e esperava, tendo abertas por cima as Canções de Gounod; mas não aparecia jamais um doente.
Os Maias, Eça de Queirós
E se tiver uma carpete vermelha na entrada? E luzes azuis? Janelas pequenas demais? E as secretárias em pinho? Ou cerejeira? E sofás em pano? Ou pele?
O comunicado tenta explicar também que não se pode fazer este tipo de publicidade. Acho que querem dizer que não se pode estar tão acessível. Para manter aquela ilusão de que os Advogados são essenciais. Aquela coisa do fruto proibido e apetecido. Aquele tique de olhar para cima para disfarçar as vertigens. Aquela fantasia de que o Advogado é sério se for sisudo, mal encarado, deixar o cliente uma hora na sala de espera, cobrar caro e falar alto. "Quando finalmente chego ao cimo, é mais acima que a divindade mora". Temos que adorar o Torga.
Outra vez com aquela coisa de dignidade e tal. Não será o andar que garante a dignidade ao Advogado, digo eu. Ou se calhar é. É uma daquelas coisas que estarão na Sala do Conhecimento, a que só podemos aspirar depois de fazer todos os exames e formos Advogados a sério. Sisudos, mal encarados, deixando o cliente uma hora na sala de espera, cobrando caro e falando alto.
Trancados numa torre, fingindo uma moralidade acima da dos demais, andam os Senhores Doutores Advogados da OA fiscalizando tudo e todos. E o pior é que têm ainda poder para isso. Um grupo de Advogados teve uma ideia, e vêm logo estes outros Advogados dizer que não podem. Que é proibido. Que não é digno. Porque não lhes pediram autorização, parece. Acima de tudo. Acima de todos. Armados em cavaleiros. Armados.
Notícia
O verme também vivia...
O Sol , de todos, como diz a Lei,
Aquecia-lhe o corpo musculado;
Mas a roda passou..., era de ferro...
O caminho bastava..., aproveitado...
Mas Deus, que guiava a roda,
Vinha bêbado e malvado.
Tinham-lhe dito que a Vida
Pouco era,
De tão grotesca e pequena;
Só não havia outro sonho
Que tanto valesse a pena!...
Andava e contava os passos
Para saber a distância
Que nos separa do céu...
Mas a roda passou..., era de ferro...
E Deus que guiava a roda
Nem o viu...
O Outro Livro de Job, Miguel Torga
2 Comments:
Na generalidade, concordo com os comentários.
Não consigo perceber quais as objecções em relação àquele escritório.
O facto de ser denominado "Loja Jurídica" pode contender um pouco com as regras relativas à publicidade e à denominação dos escritórios (que ou têm o nome dos advogados ou o nome da sociedade.
Mas as outras considerações são muito difíceis de entender.
O Rogério Alves até não é anti-advogados, mas deixa-se manipular pelos membros da sua equipa. Nem se apercebe do que se está a passar na Ordem dos Advogados. Quando verifica o que acontece, conforma-se e submete-se.
parabéns pelo texto, simplesmente hobbesiano..."Aquele tique de olhar para cima para disfarçar as vertigens"... sem palavras... Fica por aí, a frase é tua, mas a amizade é nossa!
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