27 maio 2007

Consultas "grates"

- Manuel! Veste uma camisa lavada que vamos à OA pedir um conselho jurídico!

Vem aí mais um dia da consulta jurídica gratuita. É uma espécie de piquenique, em que os Senhores Doutores Advogados saem do escritório para ir dar conselhos a uns outros Senhores que têm problemas e que querem partilhá-los.
Esta ideia é uma repetição da iniciativa do ano passado, portanto, o regulamentozinho que a rege é exactamente igual: é que nem mudaram a data, e continua a dizer-se que realizar-se-á no próximo dia 18 de Maio de 2006. Não realiza nada!

- Leva umas sandochas de torresmos, Maria, que diz que vai lá estar muita gente!

No dia da consulta jurídica organizada no ano passado, dizem para aí uns dados oficiais publicados, foram realizadas 1047 consultas jurídicas sendo que ficaram “1054 cidadãos esclarecidos e informados”. Sim, porque o porteiro que estava todo pendurado a tentar ouvir o que se dizia, e o segurança que ia a passar no momento da consulta, embora não tivessem nenhum problema, ficaram absolutamente esclarecidos também.

- Leva a cadeirinha da Expo, que eu sou uma mulher doente, não posso estar muito tempo em pé!

Então, e como funciona isto? Já para já, há uns Senhores Doutores Advogados que se voluntariam para prestar estas consultas jurídicas. Os doutorzinhos estagiários de segunda fase já podem participar. Ou não. Podem. Não podem. Mas diz que podem. Afinal, não podem.
O comunicado que anuncia o dia da consulta jurídica deste ano diz que os estagiários podem participar. Só podem os de segunda fase, mas podem. No entanto, o regulamentozinho continua a dizer que os estagiários só podem assistir, se forem autorizados, pelo consulente e pelo Senhor Doutor Advogado. Pronto: temos já aqui um problema de interpretação, que só pode ser dirimido, ele próprio, pela consulta a um Ilustre Colega.

- Maria, isto está uma fila que nunca mais acaba! E corre um ventinho que não se pode!

Depois, no dia marcado, que vai ser o dia 21 de Junho, nos “locais devem assegurar condições de privacidade e de confidencialidade, apresentando um mobiliário simples mas digno (uma secretária e três cadeiras)” – como se escreve no regulamento – alinham-se as mesinhas, perfilam-se os Senhores Doutores Advogados, e abrem-se as portas.

- Manuel! Corre, filho, que apanhas um dos primeiros advogados!

Longas filas, o pessoal em ordeira espera, pelo privilégio de passar uns minutos com o Ilustre Advogado. E quando chegar a sua vez, o consulente escreve numa folhinha o nome e morada – não esquecer que os números de telefone móvel e fixo, são obrigatórios – e identifica o seu problema.
Para que é necessária a identificação completa, incluindo número de calçado e medida da anca, não se sabe muito bem. O Senhor Doutor Advogado não pode patrocinar a causa, não se sabe para que precisa a OA ter a identificação (mais que) completa do consulente. Mas a OA manda, e só ela sabe porquê e porque isso é melhor para nós.

O cidadão, ansioso, em pulgas, alvoraçado, aflito, desassossegado, mortificado, espera outra vez, até ser direccionado para uma mesinha, onde já está um Senhor Doutor Advogado. Mais ou menos especialista... É o que está disponível, vá... Muito bom já é estar ali algum... Se a questão é divórcio e o Senhor Doutor Advogado faz mais comercial, não importa, que as leis sabe quais são e sabe lê-las. E dá a sua opinião, pronto...

- Bom dia, senhor doutor advogado!

E lá conta como a sua vida está uma desgraça, que nem tem dormido, que precisa de um conselho, que se assim continua ainda se desgraça. E o que pode o advogado fazer? Ouvir, consultar uns livrinhos que tenha levado, e opinar.

- O senhor doutor advogado acha mesmo? E o que faço agora?

Agora, vai procurar um senhor doutor advogado. A quem vai contar tudo outra vez. E mostrar os documentos, e pedir opinião, e pagar. E esse senhor doutor advogado pode ter a mesma estratégia para o problema ou não. E se não tiver? Em quem confia o cliente? Não ficará sempre na dúvida se o outro senhor doutor advogado teria razão?

- Muito agradecida, Senhor Doutor Advogado! Muito obrigada! Muito bom dia!

A "loja jurídica" foi criticada - enfim, perseguida! - porque não representava uma forma digna de exercício da Advocacia. Era um piso térreo, com acesso para rua, uma pouca vergonha! Já esta iniciativa é de louvar, porque é num piso térreo, com acesso para a rua.
E estas fitas, armações, teatrices, fantochadas, são para quê? Para a OA poder fazer de si própria boa samaritana. E fazer aparecer os seus representantes nos serviços de notícias. No mesmo dia, aparecem no Conselho Distrital de Lisboa e na Câmara Municipal de Lisboa, os mesmos tais representantes. Coincidências.

Porque é que este sonho absurdo
a que chamam realidade
não me obedece como os outros
que trago na cabeça?

Eis a grande raiva!

Misturem-na com rosas
e chamem-lhe vida.
Poeta Militante I, José Gomes Ferreira

07 maio 2007

"É mais acima que a divindade mora"

A Loja Jurídica foi censurada. Perdão, encerrada. Perdão, convidada a fechar. Perdão, interpelada para se trancar e nunca mais abrir, sendo os seus participantes perseguidos até ao fim do mundo conhecido, tendo quem com eles se cruzar autorização para apedrejar a gosto.

Parece que foi isto que aconteceu: que eu não vi, mas ouvi dizer. Uns Senhores Doutores Advogados tiveram uma ideia: criaram um escritório de advocacia em centros comerciais, ou lá perto. Com um grande estilo, devo dizer. Amplo. Arejado. Moderno. Bonito. Chamaram-lhe Loja Jurídica.
Mas vieram lá uns outros Senhores Doutores Advogados, que não são do Restelo, são ali de São Domingos, que mandaram encerrar tudo. Como na velhinha história da guerra de 1908, do Raul Solnado:

- Vieram cá os fiscais, não tínhamos licença de porte de arma, encerraram a guerra.

Circula por aí um comunicado no qual a OA explica porque mandou fechar a dita Loja. Primeiro, é porque ninguém lhes pediu autorização. Escreve-se logo no primeira parágrafo, que abriram a Loja sem qualquer autorização, portanto este deve ser o fundamento mais importante.

Mas há mais motivos, está bom de ver. Dizem que é uma manobra que mercantiliza a profissão, que não é compatível com o exercício da advocacia.
Estar um advogado na televisão a dar conselhos e opiniões, não mercantiliza? Frequentar festas e eventos sociais distribuindo cartões de visita, não mercantiliza? E daquelas vezes em que a própria OA organizada dias da advocacia, em que estão os Senhores Doutores Advogados, alinhados em mesinhas, recebendo e aconselhando os senhores que lá caem?

Em qualquer caso, embora não seja do conhecimento comum, os advogados são pessoas que exercem uma profissão. E têm contas para pagar e precisam clientes. Os políticos são pagos. E regem a coisa pública. Os médicos são pagos. E cuidam da vida e saúde das pessoas. Mas os advogados têm pudor de falar em dinheiro. Só pudor, é certo, mas algum pudor.

Depois, vem a OA, neste seu comunicado, peça para ficar nos anais, queixar-se de que é um problema a Loja estar num piso térreo, com acesso para a rua. Roça o ridículo. Que assim se vulgariza a profissão, ao arrepio da exigência de dignidade no exercício da profissão, bem como dos usos, costumes e tradições da classe. E será diferente se tiver o escritório no 1.º piso? Do lado direito? E se for do esquerdo? E no último piso, pode? E se for num prédio sem elevador? E a regra, aquela lá dos bons costumes e tradições, só obriga a ter escritório nos andares de cima? E se tiver na cave? Piso térreo não seria aconselhável, até para garantir o acesso a pessoas com deficiências?!

O seu gabinete, no consultório, dormia numa paz tépida entre os espessos veludos escuros, na penumbra que faziam os estores de seda verde corridos. Na sala, porém, as três janelas abertas bebiam à farta a luz; tudo ali parecia festivo; as poltronas em torno da jardineira estendiam os seus braços, amáveis e convidativos; o teclado branco do piano ria e esperava, tendo abertas por cima as Canções de Gounod; mas não aparecia jamais um doente.
Os Maias, Eça de Queirós

E se tiver uma carpete vermelha na entrada? E luzes azuis? Janelas pequenas demais? E as secretárias em pinho? Ou cerejeira? E sofás em pano? Ou pele?

O comunicado tenta explicar também que não se pode fazer este tipo de publicidade. Acho que querem dizer que não se pode estar tão acessível. Para manter aquela ilusão de que os Advogados são essenciais. Aquela coisa do fruto proibido e apetecido. Aquele tique de olhar para cima para disfarçar as vertigens. Aquela fantasia de que o Advogado é sério se for sisudo, mal encarado, deixar o cliente uma hora na sala de espera, cobrar caro e falar alto. "Quando finalmente chego ao cimo, é mais acima que a divindade mora". Temos que adorar o Torga.

Outra vez com aquela coisa de dignidade e tal. Não será o andar que garante a dignidade ao Advogado, digo eu. Ou se calhar é. É uma daquelas coisas que estarão na Sala do Conhecimento, a que só podemos aspirar depois de fazer todos os exames e formos Advogados a sério. Sisudos, mal encarados, deixando o cliente uma hora na sala de espera, cobrando caro e falando alto.

Trancados numa torre, fingindo uma moralidade acima da dos demais, andam os Senhores Doutores Advogados da OA fiscalizando tudo e todos. E o pior é que têm ainda poder para isso. Um grupo de Advogados teve uma ideia, e vêm logo estes outros Advogados dizer que não podem. Que é proibido. Que não é digno. Porque não lhes pediram autorização, parece. Acima de tudo. Acima de todos. Armados em cavaleiros. Armados.

Notícia
O verme também vivia...
O Sol , de todos, como diz a Lei,
Aquecia-lhe o corpo musculado;
Mas a roda passou..., era de ferro...
O caminho bastava..., aproveitado...
Mas Deus, que guiava a roda,
Vinha bêbado e malvado.

Tinham-lhe dito que a Vida
Pouco era,
De tão grotesca e pequena;
Só não havia outro sonho
Que tanto valesse a pena!...

Andava e contava os passos
Para saber a distância
Que nos separa do céu...
Mas a roda passou..., era de ferro...
E Deus que guiava a roda
Nem o viu...

O Outro Livro de Job, Miguel Torga

02 maio 2007

As Feras e as Bestas

Passado um ano, já estou completamente desmotivado.
Um ano com novas aulas, nas quais pouco ou nada aprendi. E queria tanto! Até comprei um caderninho para cada disciplina e tudo, julgando eu que ia ser como na faculdade: capazes os professores de dizerem alguma coisa que valesse a pena escrever. Aqui nem há professores: são formadores. Que nos tratam a todos por Colega Dr.,

- Ó Dr., diga lá, sem medo que somos todos Colegas! Dr.!

e a quem se entretêm a contar das suas histórias e dos seus casos lá do escritório. Até se podia aprender, mesmo assim, não era? Ali não. É verdade que há excepções. Como as não conheci, não posso falar delas, que os meus ensinamentos deontológicos não me permitem.

- Então, Doutores! Novidades? – diz ela, formosa e nada segura.

Entretanto, lá no escritório – e encho a boca –, continuo a entregar requerimentos nos tribunais e nas conservatórias e nos cartórios e nas finanças e nos escritórios dos Colegas. Ando de fatinho para cima e para baixo no metro, com uma pasta da sociedade – lá do escritório – debaixo do braço. Com ar arrogante, para fingir que sou mesmo importante, a ver se as pessoas não olham a pastinha meia vazia e pensam:

- Olha, o estagiário lá do escritório a fazer serviço de estafeta.

Que é para isto que o curso de Direito me habilita imediatamente: para ser estafeta. Cinco anos de estudo, mais um que já vai passado. Ainda sei o é uma licença (é a remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento de um particular que passa a ser livre, nas palavras do saudoso Prof. Sousa Franco), sou capaz de lhes explicar o que é um terceiro para efeitos do registo predial (os terceiros referidos são apenas aqueles que tiverem, nos termos do já examinado artigo 17.º/2 do Código do Registo Predial, uma presunção júris et de jure a seu favor. Escreve Menezes Cordeiro, e sei mesmo o que ele quer dizer). Não acreditam. Deviam ver o ar sério que o Senhor Doutor Advogado Patrono Colega carrega no rosto quando me passa o envelope para as mãos:

- Dr., vai entregar isto no escritório do Colega. Olhe que é muito importante! Não perca!

Passados dois anos, estou capaz de cortar os pulsos. A alguém.
Lá no escritório onde vou estando, só apareço de manhã. Faço umas coisas. Como o Senhor Doutor Advogado Patrono Colega sabe que preciso dele durante três anos, faz o que entender do meu tempo. Incluindo embrutecer-me.
Lá na OA também vou fazendo do que querem. Já não há aulas. Agora há umas coisas, uma vez por mês, que se chamam escalas. Não esperem – acho que ninguém espera – que tenha grandes conquistas naquelas alegações do debate instrutório, ou que requeira grandes diligências de prova naquela instrução, ou que invoque atenuantes para diminuir a pena do condenado. Encolho os ombros, o mais das vezes, que a vontade também esmorece.

O Senhor Doutor Advogado Patrono Colega não há maneira de passar um cheque que se veja ao aqui Colega. De tarde levo o meu fatinho até ao trabalho que vai pagando as contas e os vícios. Como o vício de ser Advogado, que assim que acabei as aulinhas tive que pagar outra vez. Acho que vou perceber depois para quê.

- Boa tarde. O meu nome é AR, estou a ligar-lhe do seu Banco. Este momento é oportuno para falarmos um pouco?

Vendo cartões de crédito a uns senhores que não têm tempo para me ouvir, nem grande interesse.

- Ó senhor, eu gosto de pagar logo! Só compro enquanto tenho dinheiro! E todos deviam fazer assim, que não havia as desgraças que aí se contam!

Até gostava de lhe explicar que algumas daquelas Cláusulas pequeninas que tem no contrato de adesão ao cartão de crédito que lhe estou a impingir podem ser consideradas nulas, mas não posso porque a Senhora Supervisora está a escutar e vem corrigir prontamente. E ameaçar: que não é assim que se conseguem os objectivos, que assim não há prémio de produtividade, que assim não há trabalhinho.

E a OA cada vez mais longe. Cada vez que sou obrigado a fazer uma escala, tenho que pedir ao patrão a sério que me deixe ir. Que vá, mas no dia seguinte tenho que fazer 10h, para compensar. Digo-lhe que é ilegal?

Passados três anos, já nem sei onde fica a OA. Como passei três anos a telemarkintar, já não sei que quando interponho uma acção com um pedido de divórcio posso cumular logo o pedido de pensão de alimentos. Não me recordo. Passaram três anos desde que fiz a primeira fase com as aulinhas na OA, e pelo menos quatro desde que tive direito da família. Enquanto levo e trago documentos ao senhor notário - outro licenciado em Direito mas que não fez estágio na OA, que está pagar a sua casa em Paço de Arcos e as últimas prestações do carro - não é coisa que me passe pela cabeça.
É suposto agora fazer três exames sobre matérias várias, com as quais já não lido há três anos, e mais um exame oral.

Lá na terrinha a minha mãe já não diz que o filho é Dr., em Direito. Diz que lá está para Lisboa, a trabalhar.

- Eu disse àquele rapaz que fosse electricista! Que era tão jeitoso com as mãos! Mas meteu na cabeça que na cidade é que estava bem, que havia de ser doutor! Sacana do rapaz!

E o rapaz lá por Lisboa, sem ser Advogado nem operador de telemarketing. Demasiado tarde para ser outra coisa. Demasiado cansado para ser continuar a ser estagiário. Mais do que entregue às feras, entregue às bestas.

Mas apenas o almocreve desmontou, e num relâmpago lhe tirou os aparelhos, acabou por compreender que o ia abandonar ali, estafado, coberto de suor, indefeso, à fome do inimigo. Salvava a vida com a vida dele... E lamentava as suas dezassete libras!
E, afinal, a manhã vinha a romper!... Só quando viu o dono a caminhar pela serra fora de albarda às costas – não se envergonhar! – e sentiu os dentes do primeiro lobo cravados no pescoço, é que reparou que a luz do dia começara a desenhar as coisas e a dar significação a tudo.
Os Bichos
, Miguel Torga