30 julho 2006

Nova Ordem

Li algures, num desses documentos que os órgãos da OA aprovam, que o Estágio serve para permitir uma aprendizagem prática da Advocacia. Porém, na primeira fase de estágio, a OA obriga à presença do Estagiário numa série de aulas. Teóricas. Durante seis meses. Porquê seis meses? Bom, e porque não?
Nos demais meses, na fase complementar, o Estagiário depende completamente do escritório onde estiver.

À saída da faculdade, esta OA não tem nada para oferecer ao licenciado. Ele que vá procurar um escritório. Se quiser. Nesse escritório que o albergue, o Estagiário fará o que lhe mandarem. Como os Senhores da OA talvez saibam – é uma questão prática, mas talvez saibam mesmo assim – os escritórios tendem, cada vez mais, a especializar-se, a ter departamentos ou Advogados mais ligados a uma das áreas do Direito. O Estagiário é colocada numa delas. E nelas trabalha. O patrono dirá se trabalha bem o suficiente. Porque com excepção do salário – que, se existir, nem se pode chamar isso: são ajudas de custo, que ajudam pouco - a relação é pouco menos que laboral.

- Mas não pode! O Advogado não pode ter um contrato de trabalho! Porque é independente, e só faz o que a consciência lhe permite!
Pois.

Se gostarem do seu trabalho fica, se não vai embora. Chamar-se-ia justa causa.

- Mas não pode! O Advogado não pode ter um contrato de trabalho! Porque é independente, e só faz o...
Pois.

Depois de trabalhar no escritório durante os intermináveis, injustificáveis, incompreensíveis, intoleráveis, abomináveis dois anos de estágio (parece que já são três!), sob as ordens e direcção do seu patrono,

[- Mas não pode! O Advogado não pode ter um contrato de trabalho! Porque é independente...
Pois.]

vem a OA avaliar. Como um Agente da Autoridade tomando conta da ocorrência.

- Trabalhou só com o direito do trabalho, heim? Ora, vamos lá ver isso! E os documentos da viatura, por favor!

A relação parece um contrato de trabalho temporário. Neste caso, vem um e manda; vem outro e avalia. Como qualquer call center.

Gostaria, a este propósito, sugerir a criação de uma nova Ordem: a Ordem dos Operadores de Telemarketing. É uma ideia inovadora, original, bem sei, mas que já se justifica. Para mais, havendo tantos licenciados em Direito com esta actividade, suponho que se sintam mal representados.
Já pensei no seu funcionamento: o “telemarketingueiro” procura a sua empresa para trabalhar, mas depois – notem bem! – tem que se inscrever na OOT. E mais: tem que pagar um montante simbólico. Uma jóia! Tem que entregar o correspondente a dois salários, daqueles que só vai receber lá mais para a frente.

- Meus caros, isto é um investimento na carreira! Quem quer, quer! Há outras saídas profissionais disponíveis. Vão lá ser operadores de caixa. Sem uma Ordem, boa sorte!

E depois, ainda vai a OOT fazer uns exames! Só porque sim. Ah, é verdade: e têm que pagar nova jóia!

- É um investimento!

Ora, a avaliação deveria ser sobre matérias trabalhadas. Ao patrono interessa que saiba Direito Comercial, mas a OA não o deixará o Estagiário trabalhar como Advogado se ele não souber como deve levar a tribunal uma testemunha com residência fora da comarca num julgamento cível.
É uma obrigação que não deixa de causar alguma estranheza. Vindo de quem nada fez para preparar o Estagiário, qualquer exigência é um abuso.

23 julho 2006

Oficiando

Se fossem permitidos pactos de quota litis, talvez não fosse necessário o patrocínio oficioso. Ou, digo eu, seria um recurso muito menos utilizado.
Quem julgasse ter um direito, apresentá-lo-ia ao Advogado que escolhesse. O Senhor Doutor lhe diria se a sua pretensão é tutelada pelo Direito. Se o não entendesse, essa seria uma causa que não congestionaria o Tribunal. Se tivesse fundamento, o pagamento seria feito como entendessem ambos. No início, ou no final. Se os honorários são pagos pelo cliente com o dinheiro de um depósito a prazo mobilizado para a ocasião, ou com o dinheiro recebido da indemnização que o Advogado conseguiu no Tribunal, não devia ser relevante.
De resto, nada impede que o Advogado fixe um valor que só quer receber no final da demanda. E que, se o cliente perder, não lhe exija o pagamento. Desde que se não chame quota litis...

A existir patrocínio oficioso, não concordo que sejam os Estagiários a assegurá-lo. Se se entende que é necessário garantir que todos tenham o direito a levar ao Tribunal as suas disputas, e que isso passa pela obrigação de o Estado suportar os encargos com a taxa de justiça e com os honorários do defensor oficioso, isso deve ser assumido claramente.
Os Advogados que o entendam, e apenas esses – e apenas Advogados e não Estagiários -, disponibilizam-se para serem nomeados oficiosamente. E devem sê-lo a título exclusivo. Para isso, porém, teria que se garantir o atempado pagamento da sua intervenção. O Advogado, como qualquer profissional, depende do seu trabalho. Aliás, o Estatuto da OA, no artigo 98º, número 2, permite que o Advogado recuse tratar o assunto se o cliente não entregar a provisão solicitada. Se a Justiça for a mesma e igual para todos, incluindo todos os intervenientes, o Advogado Estagiário seria pago em tempo.
Nem se diga que apenas os maus aceitariam o trabalho oficioso.

- A gente já sabe! Os bons vão para os grandes escritórios e para as empresas!

Como em qualquer profissão, é preciso criar condições atractivas o suficiente para que quem tem vocação possa exercê-la. Da mesma forma que há médicos públicos e privados, poderia haver Advogados públicos e privados. Em qualquer caso, nunca a qualidade do serviço está assegurada.

- Ouvi dizer que uma grande sociedade, muito conceituada, muito boa, deixou passar um prazo. Que eu não vi, mas ouvi dizer!

Sempre existe a Sacrossanta OA, disposta a exercer o seu poder disciplinar sobre o Advogado transviado. A zurzir o chicote da ética sobre as orelhas do Advogado atrevido.

- Ah, mas a gente sabe como são os funcionários públicos não trabalham. E tal.

Não seria o Advogado um funcionário público. Apenas um Advogado, independente por natureza na sua acção, a prestar serviços aos cidadãos. Por acaso, é pago pelo Estado. Apenas por acaso.
Fixa-se o número de Advogados necessário, apresentam-se os candidatos, seleccionam-se os que forem precisos. Como, de resto, acontece com o acesso à magistratura. Ou à Polícia Judiciária. Os licenciados em Direito têm várias saídas profissionais à sua disposição, já sabemos.

E não concordo com este modelo de patrocínio oficioso por dois motivos: pelos Estagiários e pelos oficiosos.
Pelos Estagiários, porque a defesa oficiosa é um fardo sem contrapartida. Gastam tempo a preparar um processo, muitas vezes sem qualquer contacto nem resposta pelo seu oficioso. O seu trabalho não é avaliado nem valorado para efeitos do estágio.
Se lhe é reconhecida competência técnica, não deveria estar ainda a estagiar. Se se espera que aprenda com os seus erros, alguém devia avisar o Senhor Oficioso para que desculpe qualquer coisinha.
Se o Estagiário trabalha no escritório com essas matérias, não lhe acrescenta nada. Se não trata desses assuntos, não lhe faz falta esta prática.
Que motivação terá o Estagiário para preparar a defesa de um arguido que não lhe responde, cujo julgamento será dois anos depois, e cujo pagamento demorará três anos?

- Mas têm que ser responsáveis! E participar na administração da Justiça! Ou isso!

As virtudes da honestidade, probidade, rectidão, lealdade, cortesia e sinceridade são obrigações profissionais, usando as palavras do artigo 83º, número 2 do Estatuto da OA. Pois. E por isso, obrigados – pela consciência ou o que for – lá vão fazendo as defesas oficiosas.

Pelos oficiosos, porque se tem vulgarizado a ideia de que a defesa oficiosa não tem qualidade.

E diz o defensor oficioso confrontado pelo Juiz com a ausência do arguido:
- Meritíssimo Juiz, tem razão! Não há desculpa para a ausência do arguido! Veja lá se não pode emitir um mandado de detenção para o obrigar a estar presente!

Merecem ter defensores motivados. Que gostem do que estão a fazer. Que assumam a defesa oficiosa como a sua profissão. Como a sua vocação. Não fica bem aos Senhores Que Mandam Nisto usarem os Estagiários para fingir que o acesso aos tribunais está garantido. E que é um direito fundamental.

12 julho 2006

Alea jacta est!

Supondo que um curso superior tem a duração de cinco anos, e que são necessários 12 anos de estudo anteriores, até à obtenção do curso passaram 17 anos. De estudo e avaliações.
Há alguns anos, só passava para o ano seguinte quem tinha aproveitamento no ano anterior. Parece que ainda assim é, mas há outras possibilidades. Nem se diz já passar ou reprovar. Menos ainda chumbar. Agora a criança fica retida.
Há mais burocracia para reter o pequeno do que para lhe permitir transitar de ano. É preciso explicar - com muitos relatórios e reuniões e avaliações - a toda a gente – aos pais, aos outros professores, ao director, ao psicólogo da escola – porque não pode a criança acompanhar os colegas.

- Capaz de ficar traumatizado, ou isso!

Em qualquer caso, os Senhores Professores do ano seguinte aceitam a avaliação que fizeram os Senhores Professores do ano anterior.
No 12º ano, os Senhores Finalistas fazem os seus exames, ficam com o ensino secundário concluído, pegam nos resultados e candidatam-se às vagas do ensino superior. Há uma formas de distribuir os meninos pelos cursos, e os admitidos vão a correr à faculdade formalizar a sua candidatura. Os Senhores da Secretaria olham para os números que lhes apresentam, e acreditam. Olham com emoção e uma pontinha de orgulho para o recém caloiro, e com uma lagriminha ao canto do olho, pensa:

- Meu bravo! Média de 9,7!

Quando termina a faculdade, o finalista pega outra vez nos números que conseguiu e vai procurar emprego. E o potencial patrão também acredita.

- 14 naquela faculdade é um bom resultado! Teremos muito gosto em tê-lo connosco!

Mas se termina o curso de Direito, a história é diferente. Para além do patrão, tem que apresentar os resultados à OA. Se o patrão fica convencido, não é tão fácil com a OA.

- Então o Senhor Doutor tem média de 14? Deve ser... Vamos ter que fazer um examezinho, sabe? Senhor Doutor!

Para além da desconfiança – tão feio desconfiar assim das pessoas! -, há outro problema. Bom, pode haver! Nos exames que o aluno vai fazendo, se são detectados erros ou enganos há sempre alguma entidade para a qual se pode recorrer. Outro professor da escola, uma comissão nacional de avaliação, o Ministério da Educação. Fecha-se a escola a cadeado, chamam-se as televisões, escrevem-se cartazes e ensaiam-se palavras de ordem.
Porém, se (quando) houver (há) um engano nos exames da OA, a quem se pode o Estagiário queixar? Quem guarda o Guarda?

Quem pode fiscalizar um organismo independente e autónomo como a OA?

Artigo 2º (Estatuto da Ordem dos Advogados)
2 - A Ordem dos Advogados é independente dos órgãos do Estado, sendo livre e autónoma nas suas regras.

Mais: quem tem algum interesse nisso? O acesso à profissão depende desta coisa. Ninguém tutela esta aberração. O estudante universitário tem direitos, o Advogado tem direitos. O Estagiário tem deveres.
Os mesmos Senhores Doutores que fazem os exames, analisam se neles há erros ou não. E sempre a doutrina se divide. Já aconteceu em exames anteriores: há um erro. Uns dizem que sim, outros que não. Os que dizem que sim, demitem-se. Os que dizem que não, mantêm-se. E os Estagiários que foram prejudicados continuam a sê-lo. Esperam pela próxima oportunidade para repetir o exame. Porque a OA é nossa amiga, e nos dá essa possibilidade.
Alea jacta est.

11 julho 2006

Eu vi um comunicado

Eu vi um comunicado. É da OA. Relativo aos exames do último dia 8.

3. As provas incidirão sobre as matérias constantes dos programas da formação na 1ª fase do estágio aprovados pela Comissão Nacional de Formação, com excepção, no que a Prática Processual Civil respeita, das partes referentes aos recursos e ao processo de execução.

Três dúvidas:
1ª dúvida: se vai sair a mesma matéria, a que já foi avaliada, para quê repetir o raio do exame? Para mais, só pode fazer este exame quem, entre outras várias/demasiadas coisas, já passou no primeiro exame. Nem se trata de uma segunda tentativa. Será um teste de memória? Como uma celebração das bodas de ouro.
- Lembras-te porque fizemos isto da primeira vez, querida?!

2ª dúvida: em rigor, nem sequer é a mesma matéria, porque ainda retiram alguma. 14 meses passados sobre o primeiro exame, retiram matéria. O Estagiário é um bicho que desaprende. Há alguma razão lógica? Alguma razão? É só a mim que isto soa estranho?
Poderei invocar, se precisar, que “bem, não passei neste, mas passei no outro, que era mais difícil e tinha mais matéria! E estava menos preparado!

3ª dúvida: porque pode incidir o exame sobre recursos em processo civil e não em penal? Há alguma razão lógica? Alguma razão? Ao melhor nível dos juristas: inventar divisões onde elas não existem.

Ora, lá está: os recursos não são matéria avaliada em processo civil mas nada se diz quanto a processo penal. O que não é proibido, é permitido, logo, a pergunta de processo penal é exactamente essa: faça um requerimento de interposição de recurso do despacho de pronúncia. Ainda bem que o Senhor Doutor Advogado que faz o exame de processo penal viu o comunicado que outro Senhor Doutor escreveu. Ainda bem que os Senhores Doutores da OA comunicam uns com os outros. Recursos não são matéria de exame mas, ATENÇÂO, apenas em processo civil! Tomem tento!

- Ah, e tal! O Senhor Doutor Advogado tem que estar preparado para tudo!

Talvez. Lá no seu escritoriozinho, o Senhor Doutor Advogado, quando recebe o seu cliente, já teve um prévio contacto com ele. E o Senhor Doutor Advogado – o seu a seu dono – compromete-se a estudar o caso e a apresentar a melhor resposta. Mas talvez possa acontecer outra situação para a qual a OA nos vai preparando, desde já:

- Senhor Silva, estive a consultar o seu processo. Creio que encontrei a forma mais indicada para dissolver a sua sociedade.
- Ó Doutor!! Enganei-o! Ahahah! Não é nada disso! O meu problema é a sogra! A velha quer fazer um testamento! Apanhei-o! Heim, heim! Ó Doutor! Bem metida!!

Venha quem vier: depois de ter feito os exames da OA, não há cliente que assuste!

10 julho 2006

É só história

O vagar faz colheres. Fui tentar perceber quem e porquê achou que era necessário haver uma OA. Em que é que estariam a pensar quando se lembraram de criar uma coisa destas.
Não descobri muita coisa. Muita(s) história(s), poucas justificações. De como surgiram as leis, e os Advogados, e os Juízes, e os tribunais. E tal.

No início da vida em sociedade, aí por volta de quando os animais falavam, os conflitos eram resolvidos pelas pessoas a quem fosse reconhecida alguma sabedoria e sensatez. Não era preciso muito conhecimento jurídico, bastava bom senso e sentido de justiça.

Depois, quando a simplicidade entediou as pessoas, inventaram o Direito, e as regras, e as leis, e os processos. Foi preciso inventar Advogados, essencialmente profissionais do processo. Mas desde sempre muito bem falantes. Houve uma altura em que se julgou necessário limitar a duração da intervenção do Senhor Doutor Advogado para apenas 3 horas. Haja alguém que o cale! É algo que ficou ainda em alguns exames orais.
- Passaram 15 minutos, o seu exame terminou!

O Advogado é com frequência assemelhado a um sofista. É ainda comum vê-lo como o sujeito que sabe usar as palavras para contar uma mentira como se fosse verdade, de levar ao engano como quem revela a verdade.
Saber usar a palavra é das poucas características que se mantiveram ao longo dos tempos. Já usaram e não usaram toga, já permitiram e não permitiram mulheres, já foram e não foram pagos, já estiveram e não estiveram organizados.

Ora, a organização dos Senhores Doutores Advogados começou por ser apenas um Conselho, que nem sequer existiu em todas as épocas históricas, com o objectivo de controlar o acesso à profissão, para impedir que pessoas sem qualificações pudessem aproveitar-se das necessidades dos demais. Qualquer um poderia ser bem falante, mas só os merecedores passariam no teste. Qual Indiana Jones, em busca do Santo Graal!

Este teste, porém, quando existiu, consistia num exame que um ou dois Advogados ou Juízes faziam ao candidato. Em algumas épocas, o exame era feito depois de ter sido frequentada a faculdade. Noutras alturas, o candidato simplesmente apresentava-se ao exame. Noutras ainda, nenhuma organização controlava o acesso à profissão. As pessoas escolhiam o profissional que entendiam. O que lhes parecia melhor.

Em nenhuma altura se existiu um modelo semelhante a esta aberração que hoje conhecemos. A esta sucessão de exames. A esta interminável aprendizagem. A esta infindável correria de créditos e formações. A esta insuportável falta de respeito. A esta intolerável afronta. Mas vão-me faltando as palavras. Vai-me faltando a vontade.

Desfecho
Não tenho mais palavras.
Gastei-as a negar-te...
(Só a negar-te eu pude combater
O terror de te ver
Em toda a parte.)

Fosse qual fosse o chão da caminhada,
Era certa a meu lado
A divina presença impertinente
Do teu vulto calado
E paciente...

E lutei, como luta um solitário
Quando alguém lhe perturba a solidão.
Fechado num ouriço de recusas,
Soltei a voz, arma que tu não usas,
Sempre silencioso na agressão.

Mas o tempo moeu na sua mó
O joio amargo do que te dizia...
Agora somos dois obstinados,
Mudos e malogrados,
Que apenas vão a par na teimosia.
Miguel Torga, Câmara Ardente

04 julho 2006

Completa desagregação

Estes Senhores Doutores Advogados são loucos. Estive a ver exames de agregação anteriores. Ora, o exame de agregação é a praxe final. O jovem Doutor Advogado andou por ali a estagiar, fez uns exames, umas escalas, umas formações, e agora é admitido a exame. Chamaram-lhe o exame de agregação final, no Regulamento Geral de Formação.

Artigo 46º Composição do exame final
O exame final de avaliação e agregação é composto de uma prova escrita e de uma prova oral e traduzir-se-á num juízo de valor sobre a adequação da preparação do advogado estagiário para o exercício da actividade profissional de advocacia, com inerente atribuição do título de Advogado.

[Uma pequena nota à margem: se só agora se vai aferir a adequação da preparação do Advogado Estagiário, andaram a nomear oficiosamente, para garantir o direito constitucional à defesa e o acesso aos tribunais, indivíduos que podem ou não ser competentes.]

Notem bem: o Advogado Estagiário é admitindo a exame! É-lhe permitido inscrever-se no exame! Tem o privilégio de poder fazer o exame! Admitem a sua presença! Consentem-no! Toleram-no! De resto, os Senhores Doutores Advogados Estagiários fizeram um requerimento a solicitar a sua admissão.

- Mãezinha, dá licença? Quantos passos?

Pois eu enchi-me de coragem e fui espreitar alguns exames de agregação realizados em anos anteriores. Erros meus, má fortuna...
Leiam com precaução, atentos ao exagero que o meu preconceito tende a vincar, e à desconfiança que a OA sempre tão bem inspira.

Num exame de processo penal pergunta-se se, no caso apresentado, a detenção foi legal e se poderia manter-se. A resposta apresentada na grelha de correcção pelos Senhores Doutores Advogados, que ensinam os jovenzinhos, fazem o exame, corrigem e avaliam, entendem que a resposta certa é que: a prisão é ilegal. Esquecem-se de referir se deve ou não ser mantida. É metade da resposta.

Pergunta-se, noutro passo, se o Ministério Público pode aplicar a prisão preventiva no caso descrito. Em resposta, explica-se que isso não poderia acontecer porque o processo que corre não deveria ter sido aberto, por falta de queixa o ofendido. Esquecem-se de referir que a aplicação de medidas de coacção é da competência exclusiva do juiz de instrução, nunca do Ministério Público. Pormenores!

Numa outra questão escreve-se no enunciado que a resposta será valorizada se o Estagiário ditar requerimentos ou elaborar as peças escritas que entender necessárias ou pertinentes. Na correcção, os Senhores Doutores Advogados não têm qualquer valorização, uma vez que foram incapazes de apresentar qualquer requerimento ou peça escrita.
Nem espanta: o caso prático sugere um julgamento em processo sumário, de todos, o que menos proporciona peças escritas e pouco recomenda requerimentos. Mas entendeu-se que o Estagiário deveria ser recompensado se encontrasse algo que claramente não está lá. É só para testar a nossa atenção! E paciência!

Estas falhas não são graves. São faltas de atenção. Faltas de cuidado. Não duvido da competência dos Senhores Doutores Advogados. Não é disso que se trata.
Mas é assustador para um Estagiário pensar que o exame que vai fazer, que vai ser corrigido, fica sujeito a este tipo de falhas não graves, de faltas de atenção, de faltas de cuidado.
Preocupa-me que sete anos de dedicação a um curso não mereçam mais respeito que isto.
Desgosta-me pensar que o resultado de um exame possa depender tão mais de quem corrige do que de quem o faz. Irrita-me a OA.
Profundamente.

Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva alheia. Querem que o aceite, mas que o não abra. Trazem-me a ciência, como uma faca num prato, com que abrirei as folhas de um livro de páginas brancas. Trazem-me a dúvida, como o pó dentro de uma caixa; mas para que me trazem a caixa se ela não tem senão pó?
Bernardo Soares, Livro do Desassossego

03 julho 2006

A sala secreta

Nem posso esperar para terminar o estágio. Yupi! Depois de tanto suspense, tanta espera, tanta formação, tantos exames, tantos euros, tantos meses, nem imagino o que me estará reservado. Oh boy, oh boy! Tem que ser uma recompensa muito boa. Que faça esquecer todas as exigências, que as faça parecer um preço justo.
Yupiiiiii! Oba, oba!
Imagino como será. Depois do exame, juntam-se os Senhores Doutores Advogados e analisam a prova. Lêem atentamente. Discutem. Ponderam. Corrigem. Decidem. Tomada a decisão, entram em contacto com o estagiário.

- Senhor Doutor, habemus decretum!

Marcam uma data na qual o estagiário deverá comparecer. Será a formalização da passagem, a concretização do ritual, a aceitação pelos pares. O estagiário porá o seu ar mais sério, vestirá o seu melhor fato, carregará alguns livros na sua mala, e comparecerá, no dia marcado, no local que lhe indiquem. Nervoso. Expectante. É o dia em que vai entrar no clube. Terá um Cohiba à entrada, um copo de Barca Velha. Uma palmada no ombro, um sorriso de aprovação.

Dar-lhe-ão os parabéns, farão um discurso solene. Depois chamá-lo-ão. Entregam-lhe a cédula. Posam para a fotografia. Mais um cumprimento. Levam-no então para a sala.
A sala, suponho, é o sítio secreto dos Senhores Doutores Advogados. É o sítio onde são guardadas todas as informações, toda a sabedoria, todos os privilégios. Quando o Estagiário for admitido no clube, terá acesso a toda a informação.

Saberá, automaticamente, tudo quanto não lhe ensinaram. Todos os erros que cometeu aparecerão a seus olhos. E terá um sorriso complacente para com a sua própria inexperiência. De repente, conhecerá todas as leis, saberá como interpretá-las, como delinear uma estratégia processual, como se relacionar com a outra parte, como se dirigir ao juiz, qual o tribunal competente, qual a acção adequada, quais os factos relevantes. De um momento para o outro, tudo se vai tornar claro.

O estágio terá que ter servido para isso. Nem faria sentido passar por tudo isso se não houvesse uma significativa mudança. Membros de pleno direito do clube dos Senhores Doutores Advogados, tudo então fará sentido. Finalmente.

Quando transpus a porta do Seminário, apeteceu-lhe um largo berro de triunfo para os confins do meu medo. E a minha voz chegou à garganta e o meu gesto à ponta dos dedos. Mas uma força estranha vinda lá detrás, do grande casarão, de todos os pares de olhos dos prefeitos ausentes, da minha submissão antiga, coalhou-me o desejo e a esperança de o libertar.
Vergílio Ferreira, Manhã Submersa