29 março 2006

Visita de Estudo

Estive de escala. Obrigada. Por mais esta maravilhosa experiência. Obrigada. Se não tivesse sido, não me apanhavam lá.
A OA parece ter algum gosto em juntar Advogados Estagiários. Para que confraternizem, que criem laços de camaradagem, que partilhem as suas experiências e cartões de visita. Quase lhe reconheço algum instinto de alcoviteira. Ainda que sejam os candidatos a M.I. a tentar entrar na barca.

Lá hei-de ir desta maré.

Eu sô ua martela tal,
Aloutes tenho levados
E tormentos soportados
Que ninguém me foi igual.
Se fosse ò fogo infernal,
Lá iria todo o mundo!

A estoutra barca, cá fundo
Me vou, que é mais real.
Barqueiro mano, meus olhos,
Prancha a Brísida Vaz!

Pois lá estive.
Ora, nestas escalas, para lá do escárnio e mal dizer, os caros colegas, como eu, ficam completamente ao dispor de quem quer que seja que precise de um Advogado.
Há os que vão fazer perguntas, tirar dúvidas, entregar requerimentos.
Para grande parte das pessoas, ter um problema com a justiça é motivo para insónias. É verdade que quem não deve não teme. Mas também é verdade que todos cremos que onde há fumo há fogo. E a presunção de inocência é um princípio que não afronta estas verdades. E o cidadão comum apavora-se quando recebe uma carta do Tribunal. Ou do Advogado. E pegam na carta e vão onde o mandam.
- Aqui não podemos fazer nada. Vá lá ao TIC, há lá uns Advogados que o podem ajudar.
E o bonus pater familia pega na carta que recebeu em casa e desdobrou à frente da senhora daquela secretaria, e vai à procura do TIC e do Senhor Doutor Advogado. E quando chega, mete a cabeça, pede muita desculpa pelo incómodo, e pergunta se há quem o ajude. E lá vai o jovem e promissor M.I., disposto a ajudar o senhor. E o senhor conta a história da vida dele, e dos seus, e de como é um homem sério, e de como é uma injustiça, e de como ele não merecia, e de como nem dorme ultimamente, e de como não tem dinheiro para nada. E confia absolutamente no que lhe dizemos. Espera que digamos qualquer coisa tão extraordinária que ele não a perceba. E que isso resolva todos os seus problemas. Espera sair dali livre de tribunais e Advogados.
- Não querendo desrespeitá-lo, Senhor Doutor Advogado! Que o Senhor é sério! Mas a justiça, sabe como é... Claro que sabe, Senhor Doutor Advogado!
E os Senhores Doutores Advogados, tão nervosos quanto ele, a pensar em todos os livros que leram, e nas opiniões dos outros Doutores, os Professores Doutores, e nas divergências doutrinárias, e nos códigos, e nos códigos comentados. E lá fazem o requerimento. E dão o esclarecimento de que o senhor vinha à procura.
E depois há os Senhores Funcionários Judiciais, Senhores Procuradores, e Senhores Doutores Juízes. Olham de cima para baixo, com um ar paternalista, condescendente. Como quem tem coisas para ensinar. E as guarda para uma boa altura. Porque as lições também têm que se merecer.
- Ó Xotôr...
E mais não dizem. Fica para a próxima escala.
E estão os caros colegas, como eu, alinhados por ordem de chegada, à espera que toque o telefone e que sejam precisos. Porque temos que fazer um relatório para os Senhores Doutores Advogados, na OA. Como se tivéssemos ido a uma visita de estudo.

26 março 2006

Ab-rogatio - Ab-erratio


“Na conclusão do processo interpretativo, terá de concluir que há uma contradição insanável, donde não resulta nenhuma regra útil. A fonte tem pois de ser considerada como ineficaz.”
O mestre Oliveira Ascensão ensina assim o que é a interpretação ab-rogante. Ora, a tentação é grande para a fazer à própria OA. Mutatis mutandis. Afinal, a ab-rogação não é muito diferente de ab-erração.

Mas é fácil dizer mal. Falam, falam, falam, falam...
Ok. Então vamos encontrar um sentido para a OA. Perdoem-me o amadorismo: é a primeira vez que o faço.

Então e se a OA conferisse uma especialização? Como os médicos querem ser cardiologistas quando crescerem, o Advogado poderia querer ser penalista. Ou fiscalista. Paralelamente aos mestrados, ou pós-graduações, talvez a OA pudesse conceder graus semelhantes.
É verdade que há já muitas instituições a prestar este serviço. Sem dúvida. As mesmas que ensinam Direito durante cinco anos, e isso não impediu a OA de o pretender fazer também.

Para mais, o título de Advogado Especialista é relativamente recente. Ao que julgo saber, a forma de atribuição passa pela prestação de provas públicas organizada pela OA. Bom, talvez não fosse descabido atribuir à OA a função de preparar cursos, ou seminários, ou semestres, ou qualquer outro modelo, com esse objectivo.
Naturalmente, em substituição desta coisa a que se convencionou chamar estágio. Naturalmente, apenas para os Advogados que nisso vissem interesse.

A concretização do processo de Bolonha pode servir de pretexto para o papel da OA ser repensado.

E porque não vemos a OA financiando qualquer tipo de investigação? Nenhuma. Nada. Zerito. Népia.
Admito: nenhuma que eu conheça, mas é possível que exista. É como os pilhões: parece que existem.
Seria muito estranho que a OA apoiasse a actividade dos Advogados?
Em vez disso, exigem pagamentos por tudo e por nada antes da agregação, e a bendita mensalidade logo após a agregação. Mas fazem palestras para alertar quanto às dificuldades que o jovem advogado passa para singrar na actividade. De uma utilidade ab-rogante. Aberrante.

Ok. Eu tentei.

23 março 2006

Depoimento

O Torga tem uma maneira única de dizer as coisas. Lá arranja uma forma de dizer o óbvio sob a forma de revelação. E de fazer revelações como se fossem óbvias.
Mais não direi, porque temo que quaisquer palavras retirem valor às suas letras.
Ora vejam lá estas. O poema chama-se Depoimento. Bem podia ser o depoimento de um Advogado Estagiário. Gostava que fosse.

De seguro,
Posso apenas dizer que havia um muro
E que foi contra ele que me arremeti
A vida inteira.
Não, nunca o contornei.
Nunca tentei
Ultrapassá-lo de qualquer maneira.

A honra era lutar
Sem esperança de vencer.
E lutei ferozmente noite e dia,
Apesar de saber
Que quanto mais lutava mais perdia
E mais funda sentia
A dor de me perder.

20 março 2006

A insustentável estupidez

Por favor, alguém me explica porque se pagam 600 € para a inscrição inicial na OA?
É um preço? Mas não prestam absolutamente nenhum serviço que o justifique.
É uma taxa? Um custo que se impõe para limitar o acesso a uma determinada função? Assumam-se. Não querem tantos Advogados a concorrer com os que já estão, numa lógica sindical que repugna. E que negam. Na verdade, é tudo para nosso bem, coitadinhos, tão ingénuos e inábeis e sem experiência e sem conhecimentos. NÃO NOS PROTEJAM! Por favor, não nos ajudem!
Se não temos por onde sair, não nos deixem entrar. É mais honesto. Parece que há qualidades que são uma obrigação para o Senhor Doutor Advogado. A honestidade (não) parece ser uma delas. Mas as faculdades precisam ter muitos alunos, porque o Senhor Ministro paga por cabeça.
- Entrem, entrem! E que média têm? 9,6? Bravo, meu rapaz! Vamos fazer de ti um belo Doutor!
Ou será o valor da remoção de um obstáculo jurídico ao comportamento de um particular, que passa a ser livre? Isto é, uma licença. Isto é uma licença. Porque raio preciso eu que um Senhor Doutor Advogado, M.I. e M.D. quantas vezes quiser, me autorize a exercer a profissão que escolhi? Sua benção! NÃO ME QUERO AJOELHAR. Tenho um problema de coluna. Não posso advogar por isso?
E porque se pagam 400 € para fazer o exame de agregação? É em papel reciclado? É em folha de platina? Tem filamentos de ouro? Para que tenho que fazer outro exame? 29 cadeiras, 29 exames escritos, 29 exames orais de passagem, 29 orais de melhoria.
- Não consultou 10 processozinhos em tribunal, Senhor Doutor? São 4 de Direito da Família, Senhor Doutor?! Não, não pode ser, S-e-n-h-o-r D-o-u-t-o-r!! Só três, Senhor Doutor! Só três, é o que diz o regulamento, Senhor Doutor. Não, Senhor Doutor, pode, Senhor Doutor... Vá lá para casa escrever 100 vezes, Senhor Doutor: só três consultas em família!
Mais meses de espera para poder fazer novo exame. Se me portar bem. E pagar de novo. E for para casa estudar muito. E ter bem consciência de quão difícil é.
Os homens pequeninos são assim: sempre a olhar bem para cima, para não verem quão perto está o chão. Olhem para o chão, Senhores Doutores.

19 março 2006

Da necessidade das leis

Cícero explica a utilidade das leis. Haja alguém!
Divina mens prima et summa lex est; lex vera et ratio recta, apta ad jubendum et ad vetandum: ex qua illa lex, quam dii humano generi dederunt, recte est laudanda. Est enim ratio profecta a rerum natura, et ad recte faciendum impellens, et a delicto avocans.
Constat profecto ad salutem civium, vitamque omnium quietam et beatam, conditas esse leges, eosque, qui primum euismodi scita sanxerint, populis ostendisse ea se scripturos atque laturos, quibus susceptis honeste beateque viverent. Vitiorum enim emendatricem legem oportet esse, commendatricemque virtutum. Ideoque supplicia vitis proponit, praemia virtutibus.
Cícero, De Legibus
A lei divina é a melhor e principal lei: é a lei verdadeira e a razão justa, preparada para permitir e para proibir: a nossa lei provem daquela, que os deuses deram ao género humano, e deve ser louvada convenientemente. Na verdade, a razão é útil à ordem natural das coisas, não só impelindo a fazer as coisas de forma justa, mas também afastando do erro.
Julga-se que, sendo úteis para o bem estar dos cidadãos, e para a vida tranquila e feliz de todos, as leis são instituídas, e aqueles que a princípio tenham estabelecido decretos desta natureza, as expuseram ao povo com a intenção de as escrever e divulgar, para que, sendo aceites, vivessem honestamente e de modo feliz. De facto, convem que existam leis reformadoras dos vícios, encorajadoras das virtudes. E por isto determina castigos aos vícios e recompensas às virtudes.
In lingua latina a AR conversus est

18 março 2006

Olhá quota frequinha!

Os Senhores Doutores Advogados lembraram-se de proibir pactos de quota litis. E , antes que se esquecessem, fizeram um artigo no Estatuto da OA para dizer isso mesmo. Deram-lhe o número 101 e entusiasmaram-se com a epígrafe: “Proibição de quota litis e da divisão de honorários”. Ora, não se fala da divisão de honorários neste artigo. Isso é a matéria do artigo 102. Enganaram-se. Não faz mal. Alguns Senhores Doutores Advogados são humanos. Nesse artigo 102 se diz que não se podem partilhar honorários com nenhum Advogado. A menos que trabalhem juntos. Ainda bem que esclareceram isso!

Ora, um pacto de quota litis é um acordo entre um Advogado e o seu cliente pelo qual os honorários do Senhor Doutor serão apenas uma percentagem daquele que for o resultado da acção.
Parece que é uma prática proibida por se entender que o Advogado não pode associar-se à sorte do processo, tomando as preocupações do cliente. Ganhar passaria a ser tão ou mais importante para o cliente quanto para o Advogado. Parece que é isto.

E recuam até ao tempo em que os animais falavam, e as raposas eram os Advogados nos tribunais das corujas, para dissertar sobre a nobreza e dignidade da profissão, que não pode ser posta em causa nem colocada sob suspeita pelo contacto com dinheiro.
Mas já admitimos os juros. Eu diria que estamos no bom caminho.

Os Advogados eram os anciãos, os sábios, os ponderados, os sensatos. Davam os seus conselhos, resolviam questões complicadas apenas por aplicação do seu bom senso. Como uma fada madrinha: plim, a questão resolve-se assim. Sem querer outra recompensa que não fosse o cumprimento do dever de cidadania. Já estão a imaginar Cícero (o Feijão, para os amigos!): plim, a questão resolve-se assim.

A democracia também era assim: pelo bem de todos, e tudo e tudo, os melhores de cada polis derramavam a sua lucidez sobre os menos iluminados.
Péricles lá percebeu que a lucidez não alimenta ninguém e que seria preciso compensar os lúcidos, pelo azeite que deixavam de produzir. Virtudes todos temos, mas nem todos podemos mostrá-las.

Como é evidente, a advocacia é uma profissão. Na melhor das hipóteses, pode ser uma vocação, mas é essencialmente uma forma de vida. E, permitam-me: eu quero uma vida boa.
Não colhe, Senhores Doutores Advogados, o argumento de que o Advogado se não deve associar à sorte do cliente. Discordo. Naturalmente, ou não valeria a pena dizê-lo.
A sorte da lide não é indiferente ao Advogado. Nem deve ser. Como ao escritor não é indiferente que os leitores comprem o livro. Nem ao cantor que comprem os seus discos. Nem ao cozinheiro que jantem no seu restaurante. Nem... Nem...

E se a minha motivação, como Advogado, for a de estabelecer um novo caso julgado? De demonstrar que se pode obter um velho resultado de uma nova forma? Ganhar aquele caso é essencial. Não posso estar mais ligado, nem motivado ao desfecho do caso. Isso é quota litis?
Parece que, afinal, não poderia estar motivado, porque me estaria a associar ao cliente. E isso poderia pôr em causa o meu desempenho(!!). Sim, eu diria que para melhor.

Mas, sobretudo, a quota litis pode garantir o acesso aos tribunais, talvez melhor que a própria lei de acesso aos tribunais. O Advogado pode comprometer-se a suportar todas as despesas do processo até ao desfecho da causa, altura em que receberá uma parte do que conseguiu com o seu trabalho. Seria uma forma simples de garantir que todas as pessoas tivessem o acompanhamento do Advogado que lhes parecesse mais competente. Sem ter que se preocupar com as horas que o Senhor Doutor passa a tratar do caso, porque não terá como lhe pagar de cada vez que ele pedir mais uma provisão, para diligências várias. Porque primeiro o Senhor Doutor diligencia, e depois se verá o que sucede. Os tribunais até são independentes.

Por outro lado, o Advogado patrocinaria apenas as causas em que realmente acreditasse. Sem mais casos inundando os tribunais sem qualquer fundamento. Se não houver causa para procedimento judicial que permita alguma esperança de vencer o caso e, portanto, ser pago, também nenhum direito fundamental de acesso aos tribunais é posto em causa: é que não há ali nenhuma reivindicação tutelada pelo Direito.

Não vejo, afinal, que motivo pode ainda haver que justifique a proibição da quota litis. A não ser talvez a praxe. E parece que é da praxe que a praxe não mude.

16 março 2006

???!?!!!?!!??!!!!!??


Estive a ler o último exame de Deontologia Profissional da OA. Foi respondido pelos candidatos a Advogados Estagiários (um título que fica sempre muito bem nos cartões de visita) no passado dia 18 de Fevereiro. E confesso: li a grelha de correcção. E ainda estou a penitenciar-me por isso.
O esforço (ou a naturalidade com que é feito) para transformar uma coisa que é fácil em difícil, só para lhe dar uma ilusória importância não abona em favor da seriedade de ninguém: nem de quem está, nem de quem é obrigado a entrar. Somos todos senhores pequeninos e maus a olhar muito para cima para nos esquecermos de quão perto estamos do chão.
Pergunta-se se determinado Senhor Doutor Advogado poderá patrocinar uma certa causa. Os pormenores não relevam mesmo, não sou eu a contar a história como a quero ouvir! A resposta da OA seria uma de duas:
1) São de admitir como certas as respostas que concluam no sentido de ser possível a aceitação do patrocínio.
2) São, igualmente, de admitir como certas as respostas em que se entenda que tal patrocínio não é desejável.
Ipsis verbis.
Et nulla verba necesse sunt!

Outra pergunta do exame: o Advogado pode depor como testemunha num processo laboral em que tenha sido instrutor de um processo disciplinar, enquanto avençado de uma empresa? E a OA responde ao seu melhor nível: é de admitir que sobre os mesmos [factos] o advogado possa livremente depor.
Deixem-me chamar-lhes a atenção para o que me interessa: é de admitir, possa. Nem sim nem não, antes pelo contrário! Será o Gabriel Alves a fazer estes exames? E a responder-lhes?

E ainda, talvez o melhor: 4,5 valores para o último grupo do exame, onde se pergunta quando será o próximo Congresso dos Advogados Portugueses e como se pode participar. E mais: na pergunta o que é necessário para se poder participar há valores a distribuir para quem disser o que não é preciso!

Sou só eu que acho isto estranho? Os Senhores Doutores Advogados acreditam mesmo que não poderei exercer a Advocacia se não souber quando é o próximo Congresso? Acham essencial, para a minha realização profissional plena, que saiba que não é preciso um número mínimo de anos de inscrição na OA para poder participar nesta magna reunião?

Estão a brincar, Senhores Doutores Advogados, com coisas muito sérias. É isto que define um bom Advogado? Quatro valores num exame de 20 pode significar passar ou não. Perder mais uns quantos meses e euro nesta fase. A inscrição é obrigatória. E tratam-nos com tão pouca lealdade. A falta de respeito tem limites.
“Só há um Deus. Não terás outro Deus além de mim!”
Este deus barbaças, este velho colérico, este velho ciumento deixou-se arrastar até este ponto.
Nietzsche

Quem vai onde?!

Bravos Advogados Estagiários, lembrais-vos das aulas de deontologia? Lembrais? Ou a memória bloqueou-vos todas as recordações desses tempos, e é tudo um grande branco? Afastem-se da luz!
Eu recordo momentos. Tenho flashes. Ninguém me disse que isto ia ficar para sempre! Acordo de noite. Afogado em suores frios. Às vezes aos gritos. E em algumas alturas até estou sozinho na cama.
Dessas aulas lembro-me de dois ensinamentos absolutamente essenciais, sem os quais, disso me convenço, não poderia nunca singrar na nobre profissão da Advocacia. Deixem-me partilhá-los convosco: 1) o advogado mais novo é o que se desloca ao escritório do advogado mais velho; 2) são proibidos os pactos de quota litis.

Lá aprender o princípio, eu aprendi. Mas tenho imensas dúvidas. Tentem acompanhar-me, com a paciência que é devida aos discípulos.
Desta vez vou só dedicar-me a quem vai onde.

Dizem os pareceres, que aplicaram a doutrina, que comentou o Estatuto da Ordem dos Advogados (que é como quem diz, a Bíblia, ou o Corão, ou o Borda d’Água, ou o Mundo de Mafalda), que o que releva é a inscrição mais antiga na OA e não a idade do Advogado. E acham que com isso ficam sanadas todas as dúvidas que existam, e acauteladas todas as que possam vir a ocorrer. Mas não. Só eu tenho várias.
1ª dúvida: mas e se o Advogado esteve suspenso? Deve descontar-se esse período para calcular a idade da inscrição?
2ª dúvida: e fará diferença ter sido a suspensão sua sponte ou em resultado de processo disciplinar, regularmente iniciado, conduzido e concluído pelos órgãos competentes (competentes órgãos?) da OA?
3ª dúvida: e se tiver sido aberto o procedimento e o Advogado, antes do processo concluído, tiver suspendido a sua inscrição na OA por causa disso? E se não tiver sido por causa disso?
4ª dúvida: e se for um Advogado estrangeiro? Conta a data da sua inscrição na respectiva OA [suponho que a OA não é um castigo divino aos Estagiários portugueses, embora, confesso, não a distinga muito claramente do Grande Dilúvio]? Ou será que este tempo de inscrição começa só a contar a partir do momento em que começou a exercer em Portugal?
5ª dúvida: e se o Advogado mais velho está inscrito há muito tempo, mas nunca exerceu? Deve atender-se ao tempo de inscrição ou ao tempo que ele efectivamente praticou? E não seria melhor determinar um limite mínimo anual de intervenções em tribunal, para efeitos de cálculo dos anos em que andou a advogar por aí? Por exemplo: num ano, um Advogado deve ter pelo menos 27 presenças em tribunal. Pode pedir-se ao Meritíssimo Juiz em Direito que assine e carimbe uma folhita de presença ao Senhor Doutor Advogado. Se não tiver essas presenças, não se considera, para este fim, a sua inscrição. Contempladas que fossem as devidas excepções. Podia até fazer-se um regulamentozinho jeitoso a este propósito.
6ª dúvida: e se o Advogado mais velho tiver escritório em Faro mas passar a vida no tribunal de Chaves, onde o Advogado mais novo houve por bem estabelecer-se? Têm que ir ambos a Faro? E em carros separados? E o mais velho à frente?
7ª dúvida: e se o Advogado mais novo se quiser deslocar ao escritório do mais velho com um outro Advogado, mais velho que ambos? Tem que deixar o venerando Advogado com a porteira? Ou tem que pedir-lhe que apanhe o 23, que tem uma paragem lá perto? Ou tem que lhe explicar que, desde que comemorou os 120 anos de carreira, a cabeça não o tem ajudado?

E com todas estas dúvidas, estou ao telefone com o M.I. Colega, a tentar encontrar um lugar neutro.
- Ah, e tal, a gente encontra-se no Manel dos Petiscos, e coiso!
É que se sugiro encontrar-me no escritório do Colega, ele pensa logo:
- Eh lá! Com a breca! Este rapaz pensa que sou idoso! A minha Maria está a envelhecer-me mais do que aquilo que eu pensava!
Já se peço que o M.D. Colega se desloque ao meu escritório, ouve-se um risinho paternalista do outro lado do bocal:
- Eh! Eh! Eh! [... pausa ...] Eh! Ó Colega, será melhor vir cá o Senhor Doutor, sendo mais jovem, e assim!
No meio destas confusões e dúvidas, já não sei quem é o meu cliente, qual de nós tem razão, porque é que telefonei nem se se espera que faça uma contestação ou uma operação de peito aberto.

Advogado mais novo visita advogado mais velho. Senhores Doutores Advogados, expliquem-se!

13 março 2006

OA ou não há!

Pergunto-me, com a frequência que o tema exige, para que servirá a Ordem dos Advogados. Chamar-lhe-ei OA. Não por desrespeito, naturalmente. Nem por preguiça, com certeza. Por simplicidade.
Não se confunda OA com Ordenações Afonsinas. Nos bons e velhos tempos em que as leis eram de fácil interpretação.
"Eu, havido conselho com os da minha Corte, estabeleço por Lei e ponho para sempre, que toda a mulher que, daqui em diante, para fazer fornicação ou adultério, se for com alguém por seu grado de casa de seu marido, ou de outro onde o seu marido a tenha, que ela e o outro, com quem ela se for, ambos morram."

Não se confunda também OA com o insigne mestre Professor Doutor Oliveira Ascenção. Quando ainda se faziam manuais de exposição clara da matéria.

"III - Capital superior ao património
Por várias razões, o capital inicial pode ser logo inferior ao património social."

Exige a honestidade, que me apresente convenientemente, antes de continuar.
AR, advogado estagiário. Ao vosso dispor.

Como vos confessei, não penso mais nisto do que o absolutamente inevitável. Como tudo o que é irracional, este é um tema que me tira completamente do sério. E um advogado, estagiário embora, não pode parecer nunca fora do sério. Todas as regras deontológicas, usos, costumes, praxes e afins o impõem.

Ora, eis o que penso:
1. O curso de Direito em todas as faculdades portuguesas, ao que julgo saber, tem uma duração de 5 anos. Parece que vai deixar de ter. Parece que há para aí um processo de Bolonha. Parece que se vai conseguir ensinar tudo o que é necessário em seis semestres. Parece que sim. Mas ainda não há licenciados em Direito com menos de 5 anos de faculdade. Pelo menos!

2. Não pode ninguém exercer a advocacia sem que o pretendente esteja inscrito na (mal)dita OA.

3. Com a relativamente recente Lei 49/2004, que "define o sentido e alcance dos actos próprios dos advogados", quase tudo, se não mesmo tudo, aquilo que um licenciado em Direito sabe fazer passa a ser da exclusiva competência dos Advogados, isto é, daqueles que estão inscritos na OA.

4. Que se esqueça, se alguém pensava nisso, que existe a profissão de "jurista". O menino licenciado em Direito ou é Senhor Doutor Advogado, ou não é nada!

5. Pede-se, à entrada, como numa vulgar discoteca, que o pretendente a Advogado pague a quantia simbólica de € 600. (Já aumentou?) Simbólica, porque é o símbolo daquilo que se seguirá: não mais vai deixar de pagar na OA. Se e enquanto quiser pertencer ao clube, não já tão exclusivo, dos Advogados, naturalmente.
Sim, porque não querem ninguém contrariado!
[Os M.I. Colegas recordam-se da matéria do registo predial? O registo predial não é obrigatório! Se não for feito, não se podem transmitir os bens, mas não é obrigatório!]

6. Frequentam-se, na OA, na primeira fase de estágio, umas aulas teoricamente práticas. Os formadores são outros Ilustres Advogados. Não vou comentar, por algum respeito que me merecem todos os Colegas.
Reparem no rigor metodológico em separar o estágio em duas fases. Sempre é Direito: há um problema, que pode dividir-se em três, cada uma das três subdivisões tem sete abordagens, e cada uma dessas sete perspectivas tem quatro respostas, todas elas possíveis, defensáveis e com assento na mesma lei.

7. Faz-se um exame obrigatório nas três áreas que os Senhores Doutores Advogados lá entendem ser importantes. Porque não releva se já passaram os formandos 5 anos em exames. Todas as avaliações são irrelevantes. O que importa é a sábia opinião dos primus inter pares que compõem o quadro de examinadores da OA.

8. Só depois, devem ter passado já seis meses, pelo menos, desde o fim do curso, os licenciados podem aspirar a ser estagiários de pleno direito, ou aspirar a pagar mais uma quantia simbólica para fazer de novo o exame.
Colegas, e que exames!! Terá que ficar para outra oportunidade.

9. Mais ano e meio de escalas inúteis e oficiosos e acções de formação (grande parte pagas, pois claro!) e créditos e consultas e relatórios e mais um pagamento simbólico. Tudo pelo privilégio de se poder, de novo, ir a exame. E a oral. Quantas vezes/cheques for preciso, até conseguir a cédula profissional. A definitiva, a boa, a que justifica 7 anos de exames e propinas. Na faculdade ou na OA.

10. Dois anos depois, pode o licenciado em Direito, agora Senhor Doutor Advogado, começar a pensar na vida. Em muitos casos, começa a receber o seu primeiro ordenado! A "criança" terá, com sorte, 25 anos. Mais algum tempo para encontrar alguma estabilidade financeira. Aos 27, este "ganda maluco" quase pode começar a pensar comprar um T1 em Aveiras de Cima! Ou de baixo. E, querem ver que se pode casar, ou lá o que for?!

A OA não fez, entretanto, mais do que uns quantos exames, corrigi-los, ou lá o que fazem, e cobrar. Cobrar a estagiários que não são pagos. E que trabalham muitas horas por dia. E que fazem trabalho que os patronos assinam.

Muito bem: há advogados estagiários que são remunerados, que trabalham e apredem muito nos seus estágios, com os seus patronos. E são felizes para sempre. Mas se só há lugar para esses, não há motivos para entrarem todos os anos centenas de caloiros nas faculdades portuguesas. Nem todos podem ser médicos, são enfermeiros ou massagistas ou cabeleireiras ou cantores pimba. Perdão, cantores de música ligeira portuguesa. Não são menos por isso.

Aos Colegas Estagiários, a minha solidariedade. E um bocadinho da minha revolta.