04 julho 2006

Completa desagregação

Estes Senhores Doutores Advogados são loucos. Estive a ver exames de agregação anteriores. Ora, o exame de agregação é a praxe final. O jovem Doutor Advogado andou por ali a estagiar, fez uns exames, umas escalas, umas formações, e agora é admitido a exame. Chamaram-lhe o exame de agregação final, no Regulamento Geral de Formação.

Artigo 46º Composição do exame final
O exame final de avaliação e agregação é composto de uma prova escrita e de uma prova oral e traduzir-se-á num juízo de valor sobre a adequação da preparação do advogado estagiário para o exercício da actividade profissional de advocacia, com inerente atribuição do título de Advogado.

[Uma pequena nota à margem: se só agora se vai aferir a adequação da preparação do Advogado Estagiário, andaram a nomear oficiosamente, para garantir o direito constitucional à defesa e o acesso aos tribunais, indivíduos que podem ou não ser competentes.]

Notem bem: o Advogado Estagiário é admitindo a exame! É-lhe permitido inscrever-se no exame! Tem o privilégio de poder fazer o exame! Admitem a sua presença! Consentem-no! Toleram-no! De resto, os Senhores Doutores Advogados Estagiários fizeram um requerimento a solicitar a sua admissão.

- Mãezinha, dá licença? Quantos passos?

Pois eu enchi-me de coragem e fui espreitar alguns exames de agregação realizados em anos anteriores. Erros meus, má fortuna...
Leiam com precaução, atentos ao exagero que o meu preconceito tende a vincar, e à desconfiança que a OA sempre tão bem inspira.

Num exame de processo penal pergunta-se se, no caso apresentado, a detenção foi legal e se poderia manter-se. A resposta apresentada na grelha de correcção pelos Senhores Doutores Advogados, que ensinam os jovenzinhos, fazem o exame, corrigem e avaliam, entendem que a resposta certa é que: a prisão é ilegal. Esquecem-se de referir se deve ou não ser mantida. É metade da resposta.

Pergunta-se, noutro passo, se o Ministério Público pode aplicar a prisão preventiva no caso descrito. Em resposta, explica-se que isso não poderia acontecer porque o processo que corre não deveria ter sido aberto, por falta de queixa o ofendido. Esquecem-se de referir que a aplicação de medidas de coacção é da competência exclusiva do juiz de instrução, nunca do Ministério Público. Pormenores!

Numa outra questão escreve-se no enunciado que a resposta será valorizada se o Estagiário ditar requerimentos ou elaborar as peças escritas que entender necessárias ou pertinentes. Na correcção, os Senhores Doutores Advogados não têm qualquer valorização, uma vez que foram incapazes de apresentar qualquer requerimento ou peça escrita.
Nem espanta: o caso prático sugere um julgamento em processo sumário, de todos, o que menos proporciona peças escritas e pouco recomenda requerimentos. Mas entendeu-se que o Estagiário deveria ser recompensado se encontrasse algo que claramente não está lá. É só para testar a nossa atenção! E paciência!

Estas falhas não são graves. São faltas de atenção. Faltas de cuidado. Não duvido da competência dos Senhores Doutores Advogados. Não é disso que se trata.
Mas é assustador para um Estagiário pensar que o exame que vai fazer, que vai ser corrigido, fica sujeito a este tipo de falhas não graves, de faltas de atenção, de faltas de cuidado.
Preocupa-me que sete anos de dedicação a um curso não mereçam mais respeito que isto.
Desgosta-me pensar que o resultado de um exame possa depender tão mais de quem corrige do que de quem o faz. Irrita-me a OA.
Profundamente.

Trazem-me a fé como um embrulho fechado numa salva alheia. Querem que o aceite, mas que o não abra. Trazem-me a ciência, como uma faca num prato, com que abrirei as folhas de um livro de páginas brancas. Trazem-me a dúvida, como o pó dentro de uma caixa; mas para que me trazem a caixa se ela não tem senão pó?
Bernardo Soares, Livro do Desassossego