11 junho 2006

Questão de método

Uma grande preocupação de todos os professores das faculdades de Direito é deixar bem claro, logo na primeira aula, porque devem todos assistir e aprender muito com a cadeira: é que aquela é a mais importante do curso. E perde-se a explicá-lo. Entusiasma-se. Agita-se.
É verdade: não conheço todos os professores, de todas as faculdades. De resto, querer conhecer todos os professores, atendendo ao número de faculdades, seria um projecto para o resto da vida. Como contar estrelas. E a minha mãe sempre me avisou quanto a isso.

- Não contes as estrelas que te crescem calos nas mãos.

Apesar disso, permito-me a conclusão. Considerem-na uma sinédoque, o tomar da parte pelo todo. Ou uma conclusão estatística: toda a minha amostra é assim, admitamos que todos são. Com uma margem de erro embora, que não saberia calcular.
O senhor professor doutor entra, com uma mão no bolso das calças, o sobretudo dobrado sobre o outro braço e um livro de sua autoria na mesma mão. Entra olhando o tecto, trepa para a sua cátedra, escolhe a cadeira ao centro e vai fingindo preparar-se. Os senhores doutores, assistentes, hoje, porque é o primeiro dia, entram em fila atrás do senhor professor doutor. Pisam o estrado receosos e orgulhosos, escolhem a cadeira o mais próximo possível do senhor professor doutor. E esperam que ele se sente.

Por esta altura estão os discípulos perdidos de riso da postura daquela equipa, comentam que o livro de sua autoria é uma colectânea de leis. Enquanto os alunos se não dispõem a ouvir, vão falando entre eles. Curvam-se uns para os outros, como se fosse segredo o que dizem. Acenam e sorriem uns para os outros, dão ares de importância a uma conversa trivial.

E diz o senhor professor doutor:
- Parece que as condições atmosféricas hoje estarão de feição à actividade piscatória. Pelo menos, até cerca das 10h13 ante meridiem.
E diz o senhor doutor, assistente, arrumando-se na cadeira e pondo um ar grave:
- Parece certo que assim é.
E diz o outro senhor doutor, também assistente, esticando-se todo da cadeira mais afastada:
- Pese embora, de acordo com a previsão da CNN, as condições se possam alterar antes, por volta das 10h09.
O senhor professor doutor assente com a cabeça e um sorriso pálido, já arrependido de ter acordado a ver Judging Amy, na SIC Mulher.

Quando o anfiteatro cria condições , o senhor professor doutor levanta-se, coloca a voz e discursa. Quem é ele, quem são os senhores à sua volta, o que é a cadeira, quais são os livros. E insiste na cadeira. Que é a mais importante do curso, que faz muita falta na vida prática, que é a base de outras disciplinas, que sem ela não faremos bem o curso, que não teremos bases para aprender outras matérias. Que tomemos atenção, que não faltemos, que estudemos muito. Ficamos avisados.

Na OA não acham importante nem necessário justificar o que quer que seja. É assim porque sim. É algo mais intuitivo, mais na base da confiança e da fé.

- Estamos aqui reunidos para juntar este jovem Estagiário à sua Sacrossanta OA.

Não há uma equipa. Está o senhor doutor, formador, sozinho em frente da sua turma. Não há livro de sua autoria. Vamos todos estudar os códigos. Outra vez. É uma espécie de faculdade. Mas em pequenino. Excepto na propina.
Nem passa pela cabeça ao formador justificar o que quer que seja. Alguém nos devia explicar porque vamos fazer outra vez a cadeira de processo civil. E processo penal.

- Eu passei na faculdade. Posso sair?

Em vez do discurso sobre a essencialidade das disciplinas, um cordial:

- Então doutores! Novidades!

É uma questão de método.