21 maio 2006

Em busca da competência perdida

Um Ilustríssimo Colega dirigiu a minha atenção, como é seu hábito e minha fortuna, para uma pertinente questão: que raio acontece à competência do estagiário que não passar no exame de agregação?
A partir da segunda fase de estágio, nos termos do artigo 189º do EOA, o Estagiário assume algumas competências. Porém, é apenas uma situação temporária. É que o Estagiário também tem um prazo de validade.

A consumir de preferência antes de: ver cédula (pré-) profissional.

Pode acontecer a curiosa situação de ser o Estagiário nomeado defensor oficioso num qualquer processo, e não ter competência quando for finalmente necessário agir. A competência que tinha no momento da nomeação deixou de ter no momento do julgamento. Perdeu-a. Tiraram-lha.

O Estagiário pode não querer fazer novo exame. Ou não o fazer logo. Pode não ter dinheiro para voltar a inscrever-se. Foram dois anos sem receber salário, a pagar renda, transportes, alimentação, roupa. Enfim, pequenos luxos. Os pais não lhe perdoam ter cursado direito. As bolsas são atribuídas a estudantes, não a estagiários. Não sabe se está em condição de pedir alimentos a alguém, nos termos do artigo 2009º do Código Civil. Seria preciso um Advogado. E ele não é.

A minha tentação é tentar perceber, antes de mais, porque tem o Estagiário esta competência. Não sendo respostas, gostaria de partilhar algumas explicações possíveis. Alerto para o facto de que, referindo-se à OA, o possível não deve ser interpretado como seria em qualquer outro contexto.

1. Atribuem-se aos Estagiários os casos menos importantes. (Se fizer asneira o prejuízo não é grande.)
Não pode ser por isto. O Advogado tem muitos clientes, mas o cliente só tem um Advogado. Ser condenado no pagamento de uma multa para a qual não tem rendimentos, ter a carta de condução apreendida ou ficar em prisão preventiva é um prejuízo enorme. Ainda que possa ter pouca relevância penal, tem imensa relevância pessoal.
A OA não ficaria, por certo, sossegada se não soubesse todos os casos diligentemente acompanhados. E por isso os entrega aos seus estagiários.

2. Atribuem-se aos Estagiários os casos perdidos. (Não vale a pena perder muito tempo, nem a paciência de Senhores Doutores Advogados mais experientes.)
Não pode ser por isto. A menos que o Tribunal de Pequena Instância Criminal seja uma gigantesca encenação, e não consta que Portugal invista tanto na cultura, ali se discute mesmo a responsabilidade penal dos arguidos. Se a absolvição é difícil, mais razão haveria para se convocar o mais experiente dos causídicos.

3. Atribuem-se casos aos Estagiários porque o acesso à justiça, que a Constituição quer garantir, inclui o direito a um Advogado. (Os casos oficiosos dos Estagiários permitem que a OA pareça empenhada em democratizar a justiça.)
Não pode ser por isto. Estariam a usar os Estagiários numa gigantesca campanha de marketing. A instrumentalizá-los em função de interesses de uma classe à qual ainda não pertencem. A empatar dois anos de vida destes recém licenciados para manter uma imagem.

4. Atribuem-se casos aos Estagiários porque lhes é reconhecida alguma capacidade técnica e deontológica para participarem na administração da justiça.
Não pode ser por isto. Mas gosto desta. Sempre foram cinco anos de curso. Com a breca! Alguma coisa deve o rapaz ter aprendido.

Diria eu que, afinal, o que habilita o Estagiário de segunda fase, é ter passado no exame... da primeira fase. Perdoar-me-ão a simplicidade de raciocínio, que muito diz da minha pouca capacidade para advogar, mas: fez, está feito. Nenhuma influência poderia ter um segundo exame no resultado do primeiro. Tal como não passar no segundo ano da faculdade me não obriga a voltar a fazer o primeiro.

De jure condendo, para sairmos do campo do absolutamente incompreensível e passarmos apenas para o do absolutamente absurdo, a primeira fase de estágio deveria habilitar o Estagiário à prática dos actos que o artigo 189º EOA refere. Independentemente de qualquer outro exame. Seria preciso alterar a Lei dos Actos Próprios dos Advogados. Corrigi-la, afinal.
Que raio acontece à competência do Estagiário, portanto?

É um plano absolutamente diabólico, Humano, meu caro, simplesmente humano, o diabo não faz planos, aliás, se os homens fossem bons, ele nem existiria.
José Saramago, O Homem Duplicado