10 maio 2006

Aqui d'El-Rei!

Exmo. Senhor Magistrado
do Ministério Público
AR, advogado estagiário, com domicílio profissional no primeiro escritório que lhe apareceu, solteiro que não pode sustentar nenhuma família, com número de identificação fiscal só para poder abrir uma conta bancária onde a mãe deposita a mesada,

vem apresentar

queixa crime

contra

OA, organismo absurdo, pessoa colectiva número 123-666, com sede ali para os lados de São Domingos, mas omnipresente na vida dos estagiários,


O que faz nos termos e com os fundamentos seguintes:

I. Dos Factos
1. O Queixoso frequentou a licenciatura em Direito,
2. em faculdade portuguesa,
3. regularmente constituída,
4. com o respectivo plano curricular homologado pelos organismos competentes.
5. De resto, a referida instituição de ensino é conhecida pela qualidade do seu ensino, e pelo mérito dos seus docentes.
6. E que não fosse.
7. Parece claro ao aqui Queixoso a irrelevância da apreciação quanto ao mérito da faculdade.
8. Não pode deixar de presumir-se a regularidade de uma instituição de ensino superior.
9. e da sua capacidade para conferir formação adequada na área em que se apresenta.
10. Tenha-se o referido apontamento por homenagem ao rigor e à verdade.
11. A licenciatura do ora Queixoso teve a duração dos habituais cinco anos.
12. Foi convicção dos 29 lentes que avaliaram o Queixoso que este adquirira os conhecimentos, ao menos, essenciais.
13. Discuta-se, se essa for a vontade de V. Exa., do nível de conhecimentos realmente adquiridos pelo Queixoso.
14. Faça-se a vontade do Respeitável Magistrado.
15. Porém, não se pode desde já deixar de notar a relativa inutilidade da discussão.
16. Por três motivos, para os quais peço desde já a paciência de V. Exa.
17. Desde logo, porque a avaliação é, por definição, uma acto de arbitrariedade administrativa, insindicável pelo direito.
18. Ademais, porque não pareceria menos que falta de respeito tentar encontrar falhas no julgamento feito pelos Professores Doutores em Direito.
19. Por último, porque a classificação relevante é apenas a qualitativa.
20. Está aprovado ou não.
21. Se a classificação de 10 valores
22. (já é menos?)
23. é suficiente para permitir a entrada na faculdade,
24. deve ser suficiente para permitir a entrada no mercado de trabalho.
25. Retome-se o essencial:
26. o ora Queixoso concluiu a licenciatura em Direito.
27. Em bom rigor, preparou este desfecho em bem mais que cinco anos.
28. A íntima resolução de ser Advogado teve-a o Queixoso desde muito cedo.
29. E em função dela se preparou,
30. Tomou as decisões necessárias,
31. Aceitou os sacrifícios exigidos,
32. enfim, em função dela moldou a sua vida.
33. E não se insulte o Queixoso mostrando-lhe paternalmente a vida que tem pela frente.
34. Bem o sabe.
35. Só se arrisca o que se tem.
36. Evidencie-se: o Queixoso não está arrependido.
37. Nem poderia estar, consciente antes da bondade das decisões que aqui o conduziram.
38. Não deixa por isso de se sentir indignado,
39. revoltado,
40. prejudicado,
41. injustiçado.
42. Relativamente à injustiça pede o Queixoso a intervenção de V. Exa..
43. Terminada a licenciatura, foi o Queixoso forçado a apresentar a sua inscrição como Advogado Estagiário.
44. Teve que o fazer no período que a Acusada entendeu estabelecer,
45. mediante a apresentação dos documentos que a Acusada decidiu exigir,
46. desde que fosse feito o pagamento da quantia que a Acusada achou por bem fixar,
47. e apresentado um patrono, um M.I. Advogado que aceitasse responsabilizar-se pelo acompanhamento do 48. novamente caloiro.
49. Tudo o Queixoso cumpriu,
50. não porque entendesse ser um complemento à sua formação,
51. não que fosse sua vontade,
52. mas porque a Acusada assim o determinou.
53. Sua sponte.
54. Seguiram-se meses de aulas.
55. Tão intensivas que só durante seis meses,
56. ou tão inúteis que só durante seis meses.
57. Seguiram-se três exames.
58. Que a Acusada fez,
59. apresentou,
60. corrigiu,
61. classificou,
62. reviu.
63. Recorde-se: a Acusada é uma associação pública representativa dos licenciados em Direito, nos termos do artigo 1º do Estatuto da Ordem dos Advogados.
64. Representa.
65. Não ensina,
66. Não classifica,
67. Não forma.
68. Seguiu-se um ano de trabalho comunitário.
69. A expressão, confessa-se, não é axiologicamente neutra.
70. É dever do Queixoso, porém, levar ao conhecimento de V. Exa. a verdade como a vê.
71. O trabalho comunitário consiste em trabalhar com o patrono,
72. em fazer consultas jurídicas,
73. em prestar apoio judiciário,
74. em comparecer em escalas,
75. em ter clientes oficiosos,
76. em frequentar acções de formação.
77. Em troca: nada mais para além da experiência.
78. O Queixos reconhece o valor da experiência.
79. Mas reconhece valor a outras coisas,
80. nomeadamente, e para o que aqui importa, à maravilhosa experiência de ser pago pelo trabalho feito,
81. da qual já ouviu falar, e sobre a qual já leu livros vários.
82. Seguiu-se a elaboração de uma dezena de relatórios das participações que teve neste seu trabalho comunitário,
83. mais uma dezena de relatórios dos actos judiciais que tenha presenciado,
84. acompanhados de requerimentos vários,
85. e do pagamento de mais o que a Acusada entendeu ser devido.
86. Tudo reunido, entregue e aceite, é admitido o candidato a novo exame.
87. Seguiu-se um exame oral.
88. Tudo cumpriu o Queixoso.
89. Não por convicção de que tal fosse necessário,
90. não por ter decidido,
91. mas apenas porque a isso foi forçado pela Acusada.
92. A formação da vontade do Queixoso não se ficou a dever a uma ponderação rigorosa que tenha feito,
93. livre,
94. conscienciosa,
95. das vantagens e inconvenientes da sua inscrição na OA.
96. A sua decisão, por imposta, foi viciada.
97. Julga o Queixoso importante esclarecer neste ponto, se apenas o deixou subentender, uma nota relevante:
98. é do conhecimento do Queixoso a existência de todas as saídas profissionais que a licenciatura em Direito lhe oferece.
99. O Queixoso está bem informado quanto à sua existência,
100. quanto aos requisitos a preencher para lhes aceder.
101. Sucede que o Queixoso optou pela advocacia.
102. Não tinha que o fazer. Por isso se chama escolha.
103. Optar: exercer o direito de opção; decidir-se por; dar preferência. www.priberam.pt, claro.
104. O Queixoso viu-se, portanto, na obrigação de ter um comportamento que não pôde determinar,
105. que lhe foi imposto, sob ameaça de não poder exercer determinada profissão.
106. Desta imposição resultaram prejuízos morais que se não podem avaliar cabalmente,
107. e danos patrimoniais igualmente significativos.
108. A saber:
109. € 1.000 pagos para inscrições nos exames.
110. € 800 em acções de formação.
111. € 19.200 de dois anos de salários que se não receberam.
112. De danos morais entende o Queixoso nada pedir
113. com excepção de uma compensação de conteúdo semelhante ao prejuízo:
114. um pedido de desculpas por parte da Acusada.

II. Do Direito
115. Os factos descritos preenchem o crime de coacção, previsto no artigo 154º do Código Penal.
116. A Acusada, sob ameaça de que o estagiário não poderia ser Advogado, forçou-o à inscrição na OA,
117. e ao cumprimento do programa que ela própria determinou.
118. A coacção é um meio particularmente vil de determinar o comportamento do indivíduo.
119. Para mais, a concretização desta coacção importou a violação de alguns dos mais essenciais princípios do ordenamento jurídico português,
120. como são o princípio da liberdade de escolha da profissão a exercer que a Constituição da República Portuguesa consagra e tutela, nomeadamente nos artigos 13º, 59º, 80º e 81º.
121. Também o Código de Trabalho garante a liberdade na escolha e exercício da profissão no artigo 22º.

Tendo em conta o exposto, vem o Queixoso:
a) apresentar queixa-crime contra a Acusada, nos termos dos artigos 154º/1 do Código Penal e artigos 49º do Código de Processo Penal conjugado com o artigo 113º/1 do Código Penal, e ainda do artigo 119º/2, b’ do Código Penal;
b) formular desde já o pedido de indemnização cível, nos termos do artigo 71º do Código Penal. Nos termos do artigo 483º do Código Civil, vem o Queixoso pedir a condenação da Acusada:
a. ao pagamento de € 21.000 por danos patrimoniais causados;
b. à apresentação de um pedido de desculpa ao Queixoso, para compensação pelos danos não patrimoniais causados.
c) manifestar a intenção do Queixoso em se constituir como assistente no procedimento criminal, nos termos do artigo 68º/1, a’ do Código Penal.



Pede deferimento,

AR.