23 abril 2006

Do bom uso da Língua!

Parece que estudar Camões já não é obrigatório no ensino português. Não sei se Pessoa ainda é. Ou Eça. Também não sei se Margarida Rebelo Pinto é aconselhada.
Gostaria, em tempo de parvoíces, dar também a minha sugestão para o programa de português, de um ano à escolha: o Regulamento de Estágio da OA. Peça única, de requintado recorte literário, capaz de iniciar um novo género, rivalizando no top de vendas com qualquer Código Da Vinci. Até vos impinjo uma antevisão de um próximo exame nacional de 12º ano.

1. Comente o seguinte excerto.

Artigo 2ºFases do estágio: formação inicial e formação complementar
1. O estágio terá a duração mínima fixada no estatuto e compreende duas fases de formação: a fase de formação inicial e a fase de formação complementar.
2. A fase de formação inicial destina-se a garantir a iniciação aos aspectos técnicos da profissão e um adequado conhecimento das suas regras e exigências deontológicas, assegurando que o advogado estagiário, ao transitar para a fase de formação complementar, está apto à realização dos actos próprios de advocacia no âmbito da sua competência.
3. A fase de formação complementar visa o desenvolvimento e aprofundamento das exigências práticas da profissão, intensificando o contacto pessoal do advogado estagiário com o funcionamento dos escritórios de advocacia, dos tribunais, das repartições e outros serviços relacionados com o exercício da actividade profissional.
4. Durante a fase de formação complementar o advogado estagiário participa no regime do acesso ao direito no quadro legal e regulamentar vigente.

O Autor surge neste excerto com uma atitude aparentemente determinada, mas algo amargurada. Como quem tem uma tarefa a desempenhar de que não gosta. Tem o cuidado de apresentar claramente o seu intuito: pretende falar das fases de estágio.
Ora, logo no início tem a preocupação de esclarecer que nem tudo é culpa dele. A duração, que pode ser o maior problema, não é culpa do Autor. É que ela é estipulada noutro documento, que o Autor não controla, tanto quanto sabemos, pode até nem conhecer.

O estágio está dividido em partes, e a esses períodos chamou fases: apenas momentos que vão passar. E insiste na repetição da palavra fase para o enfatizar. Para dar alguma esperança ao estagiário. Para o mesmo fim usa a aliteração do f, um som grave, arrastado, como que um sussurro, como uma brisa, como uma cantiga de embalar, para acalmar os jovens estagiários. Como quem lhes diz ao ouvido que já vai passar, que tudo correrá pelo melhor. Fixada, fases, formação, fase, formação, fase, formação.

Apesar disso, não deixa de ter uma voz firme, como o tempo futuro confidencia: o estágio terá a duração decidida. Não há margem para enganos nem segundas interpretações: ainda que o próprio Autor possa não concordar, ainda que a sua opção pessoal pudesse ser outra, o que existe deve ser cumprido. A sua vontade seria a de mudar, e apoiará a mudança, podemos especular, mas enquanto isso não acontecer, respeitará as regras vigentes e fá-las-á respeitar. É quase justo supor que formula aqui o desejo de mudança. De resto, essa mudança parece que a deseja também para as fases do estágio. Vejam como a uma fase inicial se segue uma complementar, com o entusiasmo com o 2 segue o 1. Ser-lhe-ia indiferente o nome dessa fase, diria que lhe é indiferente a existência dessas fases.

A descrição que faz de cada uma delas é igualmente elucidativa: frases longas, várias orações. Todas coordenadas, nenhuma subordinada: não há desenvolvimento da ideia, apenas uma contínua explicação, uma prolongada repetição. É o sentido desta paráfrase, desta transposição de uma ideia em termos equivalentes: de dizer o mesmo por outras palavras.

Julgo ser também esse o sentido do pleonasmo de dizer o Autor que a fase inicial pretende iniciar o estagiário. O que seria o mais irritante psitacismo é aqui, pela mestria do Autor, tão perfeita que se não nota, elevada a instrumento linguístico. Tudo ao serviço da intenção do Autor em dar um conteúdo ao que aparentemente seria dele desprovido, para que o estagiário não seja confrontado com a obrigação de frequentar uma formação sem conteúdo.

Anotemos que o campo semântico deste número 2 se refere a ciência, enquanto conhecimento: formação, técnicas, conhecimento, regras, deontológicos, competência. E a adjectivação que acompanha os termos não é menos expressiva. Nem poderia ser. Como o não são as formas verbais escolhidas: garantir, assegurado. O Autor pretende estender a sua mão forte e serena sobre as preocupações que possa ter o estagiário, transmitindo-lhe a tranquilidade e o sossego que sempre trazem a confiança e a segurança.

Noto, neste aspecto particular, uma mudança de atitude do Autor, quando avançamos no seu texto. O número 3 tem uma evidente alteração na postura do Autor. Não obstante continuar com o seu estilo professoral, desdobrando-se em explicações, e preenchendo com repetições um conceito por definição vazio, a sua intenção parece ter evoluído da anterior. Se antes o podemos ver preocupado, encarnando a missão de acolher, sossegar, tranquilizar os estagiários, agora vemo-lo, sobretudo, motivador. Paternalista ainda, mas sem se deixar cair em exageros. É sua intenção agora obrigar os estagiários à acção. Sempre com o seu acompanhamento e supervisão, mas com liberdade para actuarem por si.

Assim o vemos incitando a ida a tribunais, ao escritório, às repartições. É esse o sentido da enunciação feita, quase criando uma eufonia, com complementos sucessivos, separados apenas por vírgulas, para imprimir cadência, embalamento, movimento. O movimento que os estagiários devem fazer. Eles que vão, que vejam, que participem. Assim é que o verbo usado é apenas um: visa. Tudo o resto é o complemento, é o conteúdo do estágio em si mesmo. Há agora apenas lugar para a moralização, para o incentivo à acção. Como um pai que educou e quer agora testar os seus ensinamentos com a prática. Chega a comover.

Assim chegamos ao final do excerto. O verbo agora usado é participa. O Autor quer com isso significar que o estagiário é agora membro de pleno Direito – que bonito trocadilho – da comunidade dos Advogados. E di-lo sem rodeios.

Realmente, quem precisa de Os Lusíadas?

A que novos desastres determinas
De levar estes Reinos e estas gentes?
Que perigos, que mortes lhe destinas
Debaixo dalgum nome preeminente?
Que promessas de reinos e de minas
De ouro, que lhe farás tão facilmente?
Que famas lhe prometerás? Que histórias?
Que triunfos? Que palmas? Que vitórias?
Os Lusíadas, IV, 97, Luís Vaz de Camões