21 agosto 2006

Ir à sorte!

Há uns anos, o serviço militar era obrigatório. Os rapazes da terra perfilavam-se em frente à Junta de Freguesia, e o verdadeiro presidente escrevia numa folhinha o nome de cada um.

- Meu rico filho! Agora és um homem!

E o mancebo esperava ir às sortes. Esperava não ficar apto. Inventava um pé chato, um problema de vista, uma deficiência nos ouvidos.

- Ó senhor, sou fraco dos intestinos!
Quando se abria a portinha de onde saiam os senhores doutores capitães com a listinha na mão, saber que estava de perfeita saúde era motivo para adoecer imediatamente. Seguir-se-iam dois anos de serviço militar. Parece que depois diminuíram para seis meses.

Longe vai o tempo em que ir à tropa servia para sair da terrinha. Ou para terminar a quarta classe. Ou para tirar a carta de condução. Ir à tropa era já, nos últimos anos de obrigatoriedade, um fardo imenso. Dois anos, ou seis meses, em que fica a vida suspensa. Enquanto se vai e volta. Enquanto se fazem e desfazem as malas. Enquanto se ouvem e cumprem ordens.

E se o desgraçado do mancebo estiver a estudar, não há problema. Os senhores doutores capitães esperam que ele termine. E depois, sim, vai à tropa. Quando devia fazer-se à vida, arranjar emprego, sair de casa dos pais, poder levar a namorada a uma casa sua, sem medo que os pais cheguem mais cedo do jantar em casa dos primos afastados, o moço tem que parar tudo porque... vai à tropa.

- Pela pátria, marchar, marchar!

Ora, depois de se ter concluído que a pátria vive bem sem este sacrifício dos seus heróis, a nossa sacrossanta OA mantém a convicção da sua própria necessidade. Repare-se que, de dois anos, o serviço militar passou para seis meses. O regulamento nacional de estágio aumentou recentemente o período de estágio de dezoito para vinte e quatro meses.

- Pela OA, pagar, pagar!

Terminado o curso de cinco anos, quando o jovem licenciado se devia fazer à vida, arranjar emprego, sair de casa dos pais, poder levar a namorada a uma casa sua, sem medo que os pais cheguem mais cedo do jantar em casa dos primos afastados, o moço tem que parar tudo porque... vai estagiar.

- Meu rico filho, nunca mais és um homem!

Ainda agora como era dantes: sem ter a situação militar resolvida não consegue emprego; sem ter o estágio, não pode ser Advogado. Espera o estagiário que saiam os senhores doutores da OA com as folhinhas na mão, com os resultados de um desses muitos exames que se fazem por lá. Quer saber se está apto. Se já foi suficiente. Se já poderá iniciar a sua vida.

Pouco a pouco a letífera Doença
Dirige para mim trémulos passos;
Eis seus caídos, macilentos braços,
Eis a sua terrífica presença.

Virá pronunciar final sentença,
Em meu rosto cravando os olhos baços,
Virá romper-me à vida os ténues laços
A fouce, contra a qual não há defensa.

Oh!, vem, deidade horrenda, irmã da Morte,
Vem, que esta calma, avezada a mil conflitos ,
Não se assombra do teu, bem que mais forte.

Mas ah!, mandando ao Céu meus ais contritos,
Espero que primeiro que o teu corte
Me acabe viva dor dos meus delitos.
Bocage, Sonetos

2 Comments:

Anonymous Anónimo said...

"Fui às sortes e safei-me
Direito que nem um fuso
Não compreendo aquele uso
De fazer tudo aprumado
Ele há coisas que eu cá sei
Que só se fazem curvado

Fizeram-me a vistoria
Levaram tudo a preceito
Até me viram o peito
E um pouco mais ao fundo
Cada qual na sua vez
E tal como veio ao Mundo

No fim, já mais à tardinha
Deram um papel timbrado
Onde vinha o resultado:
Não me davam qualquer uso.
Fui às sortes e safei-me
Direito que nem um fuso"

Que todos os que tenham ido às sortes este ano saibam fazer uso da sua nobilíssima profissão

04 setembro, 2006  
Blogger Vasco Miguel Casimiro said...

lindo este post. parabéns pelo blog. sou um leitor assíduo e estudante de direito :) muitas felicidades para si.

06 setembro, 2006  

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